quarta-feira, 4 de abril de 2018

A Sucessão

Pré-requisito: Nenhum.

Autor: Gustavo Spina


Depois de três semanas sozinho em uma casa abandonada e parcialmente destruída, acredite em mim: nada o impede de sair nas ruas. Nada! Especialmente quando não se come nada por três dias. O desespero foi maior. Minha imaginação, de tudo o que poderia acontecer comigo se eu fosse visto e reconhecido foi, ao longo do tempo, dando lugar a outros pensamentos, a outras prioridades, à minha própria sobrevivência. Até que cheguei a uma conclusão: se me capturassem, talvez eu sobreviveria, mas ali; com o frio cada dia mais intenso e com o estoque de alimentos findado, eu com certeza morreria.

Só mesmo o instinto animal de sobrevivência para vencer meu medo de ser encontrado. Atirei-me pela porta dos fundos. Já no meu segundo passo fora daquela velha casa, meu coração disparou. Vi, de longe, uma mulher vestida de amarelo. Só podia ser um deles! Os pelos do meu corpo se arrepiaram, minhas pupilas dilataram e, com a claridade do reflexo da luz do dia na neve que cobria quase tudo, fiquei completamente cego. Não enxergar me deixou ainda mais nervoso, e isto tudo foi como uma bola de neve até que meu sistema nervoso colapsou.

Bem, eu não entendo nada dessas coisas, meu campo de conhecimento é completamente outro, mas esta foi mais ou menos a explicação que aquela moça me deu quando acordei em uma cela e perguntei o que é que havia acontecido comigo. Não que tenha tornado as coisas mais claras, afinal, eu continuava sem saber onde estava, quem era ela, e porquê eu estava preso ali. Mas só o que ela respondia para todas as outras perguntas, sempre com um sorriso de satisfação no rosto, era: “aguarde um momento que tudo já lhe será esclarecido”.

Estava meio zonzo. Sentia uma dor dos infernos na cabeça, devo tê-la batido quando desmaiei na rua. Sentei-me no colchão duro e sujo que havia atrás de mim, no qual havia acordado em cima, há alguns minutos. Não havia mais nada naquele cubículo além daquele colchão e de mim. Aquela moça, que até então havia me parecido bastante doce e muito contente, levantou-se e se esvaiu pelo corredor, que ficava um pouco na diagonal da porta da cela, de modo que só pude acompanhar seus movimentos até metade do caminho. Para ver onde aquele corredor obscuro entregaria aquela moça tão simpática, eu teria de levantar, e meu corpo doía muito para isto.

Continuei, portanto, apenas a mover meus olhos, passeando com minhas pupilas por todos os lados, examinando cada centímetro à minha volta. Você pode estar se perguntando o porquê eu não estou apavorado, afinal acordei preso em uma cela sem informação nenhuma sobre nada, mas, confie em mim; se eu estava vivo até agora, aquelas pessoas não poderiam ser inimigas. Se algum deles tivesse me pego eu provavelmente estaria sendo torturado. E, afinal, havia ali um colchão! Por mais duro, sujo e velho que era, ainda assim era um colchão de verdade. Se não me falha a memória, desde antes da revolução acontecer eu não deitava em uma beleza dessas.

Continuei observando tudo, entretanto, a única coisa que havia ali, além da sujeira e de duas baratas que passeavam pelo chão, era uma chapa de metal, de mais ou menos trinta centímetros quadrados, embutida em uma das paredes laterais da cela.

A moça não retornava, o silêncio cortava os ouvidos como uma navalha. O cansaço voltou a me dominar e, sem perceber, caí no sono. Acordei num pulo quando a chapa de metal se levantou, grunhindo um barulho estridente de metais se arranhando. Uma bandeja com um prato de comida e um copo de água deslizou pelo buraco e, antes mesmo de esboçar alguma reação, a chapa de metal se abaixou, ecoando seu grunhido novamente pelas paredes sujas daquele calabouço.

Não demorei a comer e beber tudo o que haviam me dado. Mesmo acostumado com a escassez que já durava anos, a fome e a sede me retorciam por dentro. Passado mais algum tempo, a moça retorna. Ouvi seus passos, se aproximando pelo mesmo corredor através do qual havia se esvaído mais cedo. Porém, quanto mais alto era o som, mais era distinguível que haviam mais pessoas. Será que era mesmo a moça? Aquele medo, que havia dado lugar à tranquilidade nas últimas horas, se espalhou pelo meu corpo novamente.

Sentei-me no colchão, olhando para o corredor. A moça então aparece, mas em vez daquela cena me tranquilizar, ela confirmou o que eu mais temia: ela vestia um casaco amarelo. Como eu não pude perceber? Ela era a menina que eu avistei de longe na rua antes de desmaiar! Ela era um deles!

“Ele está acordado, podem levá-lo”, disse ela, com o mesmo sorriso de satisfação no rosto, que agora soou muito mais maligno do que das primeiras vezes. Os sons de botinas marchando, quase que num sincronismo perfeito, deu lugar à imagem de dois homens mal-encarados na porta da cela. Colapsei novamente. Fui carregado pelos dois, sem maiores dificuldades, aos berros, pela cela afora. Minhas pupilas se dilataram novamente. Pouco pude enxergar do caminho através do qual me carregavam, sem poder saber se era o mesmo corredor diagonal que partia da porta da cela. Mas em quê isso importava?

Não tinha mais forças para gritar. Fui posto sentado em uma cadeira, meus pés e mãos foram atados firme, mas cuidadosamente a ela. Aos poucos, minha situação foi voltando ao normal, minha respiração foi ficando mais lenta, fui recuperando minha visão e a imagem de uma cadeira foi ficando cada vez mais nítida na minha frente. Olhei ao meu redor, estava em uma sala vazia, com apenas a minha cadeira e uma cadeira na minha frente. Os homens que haviam me trazido e me posicionado ali, estavam um em cada canto da parede, atrás de mim. Não havia janelas, apenas uma porta de ferro, com as quinas enferrujadas, na parede ao meu lado esquerdo.

Era uma cena clássica de interrogatório, faltava apenas o interrogador. Para completar o cenário, já começava a ouvir os passos de alguém se aproximando pela porta, mas, contanto que tudo aquilo estava um tanto quanto óbvio, nem em todo o tempo que passei temendo que este dia chegasse eu pude imaginar quem é que entraria por aquela porta para me interrogar.

Meus olhos não acreditavam no que viam: Adam Walton, o maior capitalista do século, estava à minha frente! Era ele mesmo, apesar de o ter visto apenas pelos diversos meios midiáticos, não tinha como confundir – ele fora o rosto mais evidente nos últimos anos, tão evidente quanto o meu. Sentou na cadeira à minha frente e fitou-me durante alguns segundos. Eu fazia o mesmo, enquanto minha mente tentava processar toda aquela informação. Ele vestia terno e gravata, e deslizava em cima de dois sapatos de couro brilhantes. Como isso era possível, nos dias de hoje? Como é que ele sabia que eu estava ali e onde diabos seria aquele lugar, afinal? Minha cabeça estava à mil!


-Até que enfim estamos frente a frente. Cheguei a pensar que você seria capaz de fugir de mim durante a vida toda.


Com uma voz rouca e ligeiramente trêmula, respondi.


-Eu não fugi de você. Você não compareceu aos debates.


-Eu não estou falando de antes da Grande Queda. Depois que sua revolução ruiu em migalhas, você se escondeu como um rato por entre os escombros, por anos! Covarde!
-Mas não estou aqui para te atacar, você já teve o que mereceu. Bem... ao menos uma boa parte. Estou aqui para entender. Estou aqui para ouvir de você, toda a história por trás disso tudo e dar meu toque final a esta história de terror.
-Então eu quero que você me conte. Eu quero saber de cada detalhe, de tudo o que aconteceu nos bastidores, onde os holofotes não iluminavam, e então, vou conseguir colocar nessa sua cabeça vazia o porquê o resultado foi esse.
-Vamos! Comece! Eu não tenho todo o tempo do mundo. Aliás, nós dois não temos muito tempo.


Minha mente não conseguia acompanhar a tudo aquilo acontecendo de uma só vez. Se fosse há alguns anos atrás, eu enfrentaria uma situação como esta com facilidade; mas hoje, meu cérebro já não era mais o mesmo. Não fui capaz de reagir de forma inteligente, questionar, entender e nem mesmo me recusar a fazer o que ele pedia. Fiquei apático e apenas segui sua ordem, como se estivesse atendendo a um pedido de um amigo de longa data.


-Está bem. Vou tentar detalhar ao máximo.
-Eu nasci em uma família pobre, assim como era 99% da população mundial, graças ao seu querido sistema. Assistir aos meus pais darem suas vidas para seus empregos e ainda assim termos apenas o mínimo para nossa sobrevivência, durante toda minha infância, moldou minha cabeça com uma revolta latente contra o que causava tudo aquilo.
-Durante minha adolescência, superei todas as dificuldades que me cercavam por conta de minha classe social e me tornei um estudioso de tudo o que permeava os grandes sistemas que governavam nosso mundo naquela época, sobretudo o sistema capitalista e monetário. Me tornei um exímio estudante e fui o destaque, não só de minha escola e de minha cidade, mas de todo meu país, sendo nacionalmente conhecido.
-Comecei minhas fortes críticas ao sistema capitalista, ao mesmo tempo que, por ter vindo debaixo, diferentemente de quase todo grande filósofo, economista e escritor; eu escrevia, palestrava e divulgava o meu trabalho em uma linguagem acessível e familiar a maior parte da população mundial. Talvez tenha sido isto que deu tanta força às minhas ideias.
-Aos vinte e oito anos já viajava o mundo todo em conferências, palestras, debates e workshops sobre o porquê o capitalismo deveria ser destruído. Foi nesta época que nos conhecemos. A sede das pessoas por separar tudo em dois lados acabou tornando-nos os principais rostos no cenário global: o homem mais rico da atualidade contra o homem que mais odiava o dinheiro, o capitalismo contra o não-capitalismo, o vermelho da revolução contra o amarelo da moeda, eu contra você. A partir de então, você começou o seu jogo sujo, e eu passei a não estar mais seguro em nenhum lugar do planeta.


-Ora, não despeje acusações infundadas, por favor. Você acha que eu estava preocupado pensando em que lugar você estaria a cada noite? Você realmente acha que eu era sozinho, que eu planejava e ordenava tudo? Não seja tolo.


- Eu estou sendo tolo? Eu sei que não era só você, mas da mesma forma que você não estava sozinho, eu também não estava! De que adiantaria me matar? Hein?!


-Você estudou muito, mas se esqueceu de estudar a forma como as pessoas pensam. Eu sei muito bem que você não era sozinho, mas você era o representante, a figura que simbolizava toda aquela ideia. Com você morto, tudo morria junto, na cabeça das pessoas! Ainda que seus aliados quisessem continuar suas ideias, tudo perderia força e o capitalismo não estaria mais ameaçado. É assim que sempre funcionou, e que conseguimos manter nossa hegemonia por tanto tempo.


-A ideologia de vocês é realmente inescrupulosa! Eu jamais pensei em te matar! Já não basta a vida dos milhares de pessoas que seu sistema maldito matava de fome todos os dias?!


-Basta! Me poupe do seu moralismo barato. Continue sua história ridícula porque estou ansioso para esfregar seus erros na sua cara. Ande logo! Continue!


-Os anos seguintes que passei escondido, com medo de ser morto por algum verme endinheirado como você, foram justamente os anos que me asseguraram a vitória. Este foi o seu erro! Sem comparecer a eventos, fazendo apenas vídeos para a internet que comprovavam que eu estava vivo e que deixavam aqueles que também queriam o fim do capitalismo ainda mais fervorosos, me sobrou muito mais tempo para estudar de que forma poderíamos derrubar de uma vez por todas este reinado de séculos. E enfim chegávamos a 2043! Eu nunca vou me esquecer daquele ano. Os rumores de uma nova crise no mercado imobiliário dos Estados Unidos, que vinham criando um medo global há dois anos, por fim se tornaram realidade.
-Mas, desta vez, havia um elemento que os bancos não esperavam, não é mesmo? Após o estouro da bolha, que desta vez já nasceu muito maior que a de 2007, a própria população interferiu, justamente quando os bancos já iniciavam seus planos de recuperação mútua. Sob minha liderança, milhões de pessoas sacavam dinheiro de seus bancos, todos ao mesmo tempo. Foi a minha manobra monetária contra a sua e, com isto, ficou impossível a recuperação do sistema todo. Com a economia dos EUA quebrada de uma forma como nunca havia acontecido antes, a economia internacional foi gravemente afetada, e isto encorajou países rivais a arriscar tudo para consolidar o que seria o fim do império norte-americano.
-O que se iniciou com quatro países em guerra, se multiplicou para dezoito em seis meses. O colapso econômico culminou em guerras civis em quase todos os países do ocidente. A existência da ONU já era em vão, e em mais alguns meses, nem mesmo as fronteiras entre um país e outro fazia sentido. A revolução foi mais rápida que eu imaginei, confesso. Eu sonhei minha vida toda com os dias em que derrubaríamos o capitalismo, e eu sabia que haveria muito sangue derramado, mas aquilo foi assustador. O pouco que conseguíamos saber por mídias alternativas era que a população mundial havia decrescido dois terços – fenômeno assustador que ficou conhecido como A Grande Queda. Não tive tempo nem ao menos de tentar liderar qualquer parcela que fosse do levante, no país em que eu estava na época. Assim que o mundo se cobriu numa cadeia de guerras, eu já havia me tornado o principal vilão. Meu rosto continuava sendo o mais popular daquilo que restava do mundo, mas, desta vez, eu era o causador de tudo aquilo, eu era o homem mais odiado da face da Terra.


-Era? Ainda é! Você fala como se tivesse passado muito tempo, desde então. Eu não sei se você ainda consegue raciocinar, no estado deplorável que você se encontra, mas nós estamos no dia 4 de abril de 2046!
-Passaram-se apenas três anos desde que você organizou aquele motim financeiro vergonhoso. E agora, você está feliz com seu resultado? Era isso que você queria? Um mundo inteiro completamente destruído, com as pessoas morrendo de fome?


-Quem é você para falar que as pessoas estão morrendo de fome? Agora você se importa com elas? O mundo não era tão diferente do que está agora, com o seu culto ao Dólar!
-Mas, se é isso o que você quer ouvir, eu digo: NÃO! Eu não estou feliz! Não era isso o que eu queria. Eu não sei o que aconteceu! Eu passei a minha vida inteira pensando em como mudar tudo, em como tornar o mundo um lugar melhor, sem toda aquela desigualdade social, sem má distribuição de renda, sem a existência do dinheiro! E eu consegui! Eu fiz o impossível, eu destruí o capitalismo! Onde foi que eu errei?


-Imbecil. Imbecil! Mil vezes imbecil! Como pode ser tão burro? Ao menos sua burrice está me proporcionando justamente o que eu queria quando te encontrasse: esfregar seu erro na sua cara, para você passar o que resta de sua existência miserável no mundo que você deixou para si mesmo pensando como foi que você não percebeu!


Clap! Clap! Clap! Clap!

Neste momento ele levantou-se da cadeira e começou a me rodear, enquanto batia palmas.


-Parabéns! Você realmente conseguiu fazer o impossível! Você destruiu o capitalismo. Você passou sua vida inteira planejando como faria isso, como faria sua porcaria de revolução; você só se esqueceu de pensar em uma coisa: A SUCESSÃO.
-E depois? Depois de derrubar o capitalismo, o que é que você colocaria no lugar? Isso realmente nunca passou pela sua cabeça?
-De que adianta retirar do poder um rei, se você não tem ninguém para colocar no lugar dele? De que adianta retirar do poder um presidente, se os outros candidatos estão dentro do mesmo sistema, e têm as mesmas características que têm todo político? De que adianta retirar da sociedade o sistema capitalista se você não tem nada para colocar no lugar?
-Por quê você acha que o socialismo não deu certo? O fracasso do socialismo, em cada uma de suas pífias tentativas práticas, é deveras parecido com o seu. Tirar o capitalismo para colocar uma porcaria de sistema tão falho quanto, em um local específico dentro de um mundo predominantemente capitalista? Isso não soa como uma piada para você? É claro que nunca daria certo. Mas, ainda assim, eles tinham algo para colocar no lugar, certo?


A sala foi tomada por uma gargalhada um tanto quanto forçada.


-Seu objetivo era apenas destruir, mas após a destruição, vem a reconstrução, vem a sucessão – e esta, meu caro, é a principal parte de uma revolução!


Ao ouvir tudo aquilo que ele dizia, meus pensamentos foram longe. Meu olhar ficou vago. Olhava para aquele rosto com expressões vívidas e ameaçadoras, mas via a mim mesmo. Via toda minha vida como um filme passando diante dos meus olhos. Todos aqueles anos estudando. O turbilhão de acontecimentos e polêmicas que tive inserido todos esses anos. Tudo aquilo por que passei e tudo aquilo que consegui. Para nada! Para culminar em um resultado ainda pior do que era antes. E tudo aquilo por tão pouco. Por um erro bobo. Como não pensei nisso? Como não pensei no que fazer depois?

Fui atingido por um leve tapa na cara.


-Você está ouvindo o que eu estou dizendo? Eu te fiz uma pergunta! Você sabe o que vai acontecer agora?


-Não. Ninguém sabe o que vai acontecer agora.


Adam tornou a soltar uma gargalhada.


-É aí que você se engana. Só porque você é um imbecil, não significa que todas as outras pessoas também o são. Mas não quero estender muito mais esta conversa, a hora já está chegando.


-A hora para que?!


-Você já vai saber. Vou finalizar o que tenho para te dizer e, em dezoito minutos, vamos para o grand finale!
-Ao contrário de você, eu pensei na sucessão. Desde que você conseguiu arrancar o capitalismo do mundo eu tenho moldado a ideia de como vamos recuperá-lo. Assim como meu erro garantiu sua vitória, o seu também garantiu a minha. Durante estes três anos, em vez de me esconder nos escombros como você, eu mantive contato com os principais líderes mundiais que conseguiram se manter vivos. Nossas conversas foram muito satisfatórias! Se tivéssemos mais tempo, adoraria te mostrar nosso planejamento detalhado para os próximos anos, vai ser histórico! Será mais grandioso do que os acordos de Bretton Woods em 1944! Meu sobrenome vai permanecer nos livros de história por muito tempo, não só como o sobrenome da família mais poderosa do século, mas também como o nome da ascensão do capitalismo ao mundo todo!
-Na verdade, tudo sempre esteve planejado caso alguém como você um dia conseguisse seu glorioso feito. Eu só estive ajeitando os detalhes e tudo já está prontinho há algum tempo, só faltava um pequeno elemento: você! É chegado o momento!
-Homens, por favor, executar o procedimento! Esta conversa está terminada.


Sem dizer mais nada, ele se afastou em direção à porta e saiu da sala. Os dois homens que estavam nos cantos de trás da sala desde o início da conversa se aproximaram, e logo entraram duas moças, vestidas de branco. Eram enfermeiras, e me aplicaram uma injeção no meu braço direito.

O pavor tornou a tomar conta do meu corpo, mas, desta vez, meu coração não acelerou e minhas pupilas não dilataram. Devia ser este o exato motivo daquela injeção: impedir meu sistema nervoso de colapsar e não me deixar ver a tudo o que aconteceria comigo nos momentos seguintes. Me sentia mole, sem forças. Os homens me desataram da cadeira e me carregaram pelos braços por entre os corredores daquele labirinto sujo e vazio. Meus pés trepidavam levemente conforme passavam por cima das pequenas concentrações de pedrinhas e areia que haviam pelo chão.

Um clarão invadiu minha vista. Estávamos ao ar livre. Um barulho intenso de vozes se intensificou, característico de uma multidão que estava tendo, finalmente, o que esperavam: a mim. Os homens me viraram e pude ver, do alto de uma ribanceira, uma plateia de milhares de pessoas que comemoravam ao me ver. Eu estava na ponta daquele barranco, abaixo de uma enorme estrutura de madeira. Ao meu lado esquerdo, Adam vestia um terno inteiro amarelo, que se completava com uma cartola em sua cabeça. Ele estava realmente decidido a voltar às origens do capitalismo. Com um microfone ligado à enormes caixas de som, ele começou a falar.


-Senhoras e senhores, conforme prometido, apresento a vocês o espetáculo do começo de uma nova era! A reconstrução do mundo como conhecíamos antes, o recomeço do capitalismo, o fim da Grande Queda!


O barulho das pessoas alvoroçadas, como ao ouvir sua música preferida em um show de rock, era ensurdecedor.


-Como vocês sabem, todo recomeço vem após algum final, e o final de hoje vocês já sabem qual é, não sabem? O começo desta nova se inicia após o fim dele!


Ao dizer isto, ele apontou para mim.


-Homens, deem a este homem o final que ele merece!


Neste momento, aqueles homens que ainda me seguravam pelos braços amarraram minhas mãos uma à outra, e envolveram meu pescoço em uma corda grossa que descia devagar da estrutura de madeira. Era uma forca. Eles iam me enforcar diante de milhares de pessoas, que provavelmente só estavam ali para assistir à minha morte.

Com um sorriso no rosto, e muito entusiasmo, Adam veio até mim e disse: “Obrigado!”. Voltou ao microfone.


-Quero ouvir todos vocês em uma contagem regressiva, junto comigo.
-Cinco!


Não conseguia nem ao menos chorar. Estava fortemente dopado.


-Quatro!


Será que eu realmente merecia aquilo?


-Três!


No meio da multidão começou a se desenrolar uma enorme bandeira, com aquilo que deveria ser o nome daquela nova revolução comandada por Adam.


-Dois!


Engoli a seco, esperando a morte. Parece que Adam teve realmente o que queria, pois na minha mente ecoava, em loop eterno, a pergunta: “Como é que eu não pensei nisso?”.


-Um!


Meu corpo inteiro se gelou. Senti um forte empurrão que me jogou do alto daquela ribanceira, direto para a morte. Meu corpo caía em câmera lenta. Já em queda, fiz a última coisa em vida: terminei de ler o que estava escrito na bandeira, que agora já havia se desenrolado por completo. Ele nomeou a revolução dele, com uma frase minha em um dos meus livros. Estava escrito “O OUTRO LADO DA MOEDA”.

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