terça-feira, 30 de abril de 2013

Cotidiano


Pré-requisito: Nenhum

Autor: Gustavo Spina

ACORDEI, mas não com a mesma sensação de todos os outros intermináveis e cansativos dias. Acordei sentindo algo diferente, com alguma vontade, não sabia ao certo o que era. Ainda deitado, me decidi a descobrir o que é que havia comigo. Passado alguns minutos, quando meu despertador já voltava a tocar, decidi algo para aquele que seria só mais um dia, igual a qualquer outro. Enquanto o som irritante e agudo do despertador entrava pelos meus ouvidos, eu descobri que estava destinado a prestar mais atenção, em cada mínimo detalhe de tudo o que me esperava naquela quarta-feira nublada, e foi isso que eu fiz.

Desligado o despertador e posto os pés no chão, ainda antes de me espreguiçar, ouço um barulho enorme na rua, que fez estremecer as janelas e quase me derrubou de susto. Da janela do meu quarto, me deparo com dois carros amassados, em frente a minha casa. Em meio a toda aquela confusão e gritaria quase que instantâneas, desvio a atenção e me dirijo ao chuveiro, afinal precisava me aprontar para chegar ao trabalho no horário certo, estava com três atrasos consecutivos, não podia acumular mais um.

No café da manhã, chorando, minha mãe me conta sobre o acidente: bêbado, o homem desceu a rua descontroladamente, acertando em cheio o carro de uma mulher de meia idade, que levava seus dois filhos pra escola. Apesar de rápida a chegada e ação da equipe do resgate, minha mãe tinha certeza que uma das crianças não resistiria, o garoto era muito novo pra estar no banco da frente, e onde ele estava foi a parte mais amassada do carro. Ouvi tudo calado. Despedi-me e saí apressado.

Ainda pensativo na história do acidente, resolvi esvaziar minha cabeça, ou melhor, preenchê-la com outra coisa: música. Ao pegar meus fones na minha mochila, andando depressa, não olhava pra frente e de repente pisei, sem querer, em um morador de rua, que estava deitado quase que na esquina da rua onde moro. Sem que desse tempo de qualquer reação, fingi que nada havia acontecido e apertei o passo, sem olhar pra trás. Não sabia o que ele iria fazer. Enfim, logo estava na estação, à espera de um trem.

Na plataforma, de todas aquelas pessoas idênticas, com a mesma expressão de cansaço, indo para os mesmos lugares, desanimadas, para fazerem sempre as mesmas coisas, uma mulher ao meu lado me chamou a atenção. Vestida toda de branco, completamente coberta por uma roupa que a envolvia dos pés à cabeça, ela carregava uma criança de colo junto ao peito. Como sempre, no horário de pico, os trens vinham cada vez mais lotados, e sem que pudéssemos evitar, eu e a mulher de branco fomos empurrados para dentro do trem. Fiquei, pela primeira vez, chocado com aquilo. Não por mim, afinal passo por aquela situação todos os dias, há anos, para chegar ao trabalho, mas sim pela mulher. Ela carregava uma criança! Mas ninguém tinha olhos para outro fato que não fosse sua vestimenta estranha, e além de empurrarem e espremerem ela da mesma forma como faziam com todas as outras pessoas, e de não oferecerem um lugar para ela sentar, ainda a olhavam diferente, às vezes com ar de espanto, às vezes de deboche, ou mesmo de raiva. Na verdade, tudo se resume ao preconceito. Eu também não entendia como e por que ela se vestia daquela forma, mas não era por isso que deviam trata-la daquela forma, não achei justo tudo aquilo. Porém, quando decidi tomar alguma atitude, e conseguir com que alguém levantasse para dar lugar a ela, cheguei à minha estação de destino, e tive que descer. Quando desci olhei pra trás, mas meus olhos não a encontraram naquela emaranhada multidão. Não fiquei me martirizando, ela iria ficar bem, afinal quem ali não estava em pé e apertado? Segui para o trabalho.

A algumas centenas de metros da estação, entrei na rua de onde trabalho, olhei no relógio, faltavam exatamente sete minutos para eu “bater o cartão” sem registrar outro atraso. Minha alegria, que acabava de surgir, caiu junto comigo no chão, quando trombei violentamente com um senhor, na calçada. Era bem grande e gordo. No lugar da alegria, surgiu a raiva, mas me contive, e ainda bem que o fiz. Ao me levantar percebi que o senhor carregava consigo uma haste de ferro que tateava o chão, era deficiente visual. Em meio a tantos pedidos de desculpas, acalmei-o e disse: “Tudo bem senhor, eu é que estava distraído”. E quase que instantaneamente, antes que eu virasse as costas para ir trabalhar, ele diz: “Ô meu filho, você pode me ajudar? Eu preciso chegar na avenida, estava sozinho em casa, minha esposa me ligou, ela precisa urgente de mim, eu saí apressado, você pode me ajudar, meu filho?”. Respirei fundo. Era o trabalho ou ele. Não que eu seria despedido por mais um atraso, longe disso, mas perderia meus direitos à cesta básica do mês, e uma taxa de atraso seria descontada do meu salário. Em alguns segundos então decidi ajudá-lo. Meu chefe iria me poupar do pequeno atraso quando contasse a história pra ele. Era a verdade, afinal! Conduzi então o senhor até a avenida, enquanto ele me contava um pouco da vida difícil que ele levava ao lado de sua esposa. Ela é cadeirante. Não me entrava na cabeça como aqueles dois viviam, mas não entrei em detalhes. Chegando lá ele agradeceu muito e então finalmente virei as costas e, literalmente, corri para o trabalho. Esbaforido, bati meu cartão seis minutos atrasado, era de se esperar, o senhor andava bem lentamente. Mas nem me preocupei, subi as escadas e fui direto para a sala do chefe, contar-lhe a história. Para a minha surpresa, por mais que eu explicasse e repetisse: “... mas senhor, ele era cego, precisava de minha ajuda...”, ele respondia: “... nós também precisamos de você, já são quatro atrasos, sinto muito...”. Nada poderia me desestimular mais, a não ser algumas pessoas do departamento ao lado, que riam da minha situação, como se estivessem satisfeitas com aquilo.

Passei todo meu expediente desanimado, calado. Com a cabeça totalmente longe dos meus afazeres. Pensava no acidente, no morador de rua, na mulher de branco, no ceguinho, no meu chefe, no desconto do meu salário... Minha cabeça estava à mil. O tempo voou. Quando olhei no relógio, já era a hora de ir embora, a faculdade me esperava. Saí tranquilo. Estudo perto de onde trabalho, por isso vou a pé, e sem pressa. E já que neste dia estava destinado a prestar mais atenção em tudo, resolvi ir mais devagar ainda, olhando os prédios, as pessoas e os carros.

De todos os meus sentidos, o mais perturbado era o auditivo. Em meio a tantas buzinadas e aceleradas de carros, eis que surgem também gritos e xingamentos, uma briga no trânsito. Parado no semáforo, que estava fechado para os pedestres, observava aquela cena deprimente. O homem levou uma “fechada” da mulher, ambos jovens, com belos carros. Ele desceu do carro, gritava com ela, os passageiros discutiam, as buzinas ficavam cada vez mais longas. A confusão aumentou ainda mais quando o covarde acertou um soco na menina. Não acreditei naquilo. Além das vias, as calçadas da avenida também ficaram congestionadas, cheias de pessoas, que assistiam tudo, como uma plateia. Não fiz o mesmo. Assim que o demorado semáforo finalmente deu o sinal verde aos pedestres, segui meu caminho, sem olhar pra trás.

Em frente à faculdade, um policial discutia com três rapazes. Queria multar o dono daquele carro que estava parado ali, onde era proibido estacionar. Passando devagar por eles, pude ouvir um dos três dizer: “Quanto você quer pra deixar isso quieto?”. Não consegui ouvir a resposta, mas já imaginava qual era, afinal, o que as pessoas não fazem por dinheiro, não é mesmo? Passei pelas portarias, fui pra minha sala de aula, ainda quieto.

Durante as aulas, continuei calado, não conhecia ninguém mesmo. Era começo do ano, primeira semana de aula. Como de costume, os professores já apresentavam seus calendários, enfatizando as datas das provas. Um deles, enquanto apontava a lousa, disse: “Neste dia será nossa única prova, não terá outra em hipótese alguma, por isso falem pra a avó, avô, tio (...) morrerem em outro dia, hein?”. Todos riram, eu não achei graça. Minha avó é doente. Enfim, depois de longas horas, chegou a hora de ir embora. Ia pra casa, depois daquele dia cansativo.

No caminho de volta, passei pela mesma avenida, onde teve a briga de trânsito, que por sinal era a mesma onde havia deixado o ceguinho, pela manhã. Mas como se já não bastasse essas duas, aquele lugar me trouxe outra surpresa. O semáforo estava aberto para os pedestres, mas por sorte o motoqueiro não atropelou a menininha, a uns dois passos de mim, que não segurava a mão do pai. Ele passou o sinal vermelho tão rápido, que não houve tempo pra nada. O pai gritava histericamente com a menina, que já chorava, do susto que tomou.

Já dentro do trem, voltando, estava esgotado. Não aguentava mais aquele dia. Entre cochilos, cheguei à estação e, sem demora, estava em casa. Só meu pai estava acordado, assistindo, como sempre, ao noticiário. Assim que me viu logo me perguntou: “Ficou sabendo da explosão, hoje, no Iraque? Matou mais de cinquenta!”. Só respondi: “Ah isso, nesse lugar, é todo dia!”. Subi para o meu quarto e me deitei.

Com os olhos fechados pensava naquele dia: era aquele mesmo o meu COTIDIANO? Não podia ser! E então comecei a pensar mais e mais, e muitas questões vieram à tona em minha mente.

Quantos acidentes já haviam acontecido na minha rua, e eu nunca prestei socorro? Quantas vezes saí apressado daquele jeito? Quantas vezes eu pisei em algum morador de rua, mesmo que sem querer, e nem ao menos pedi desculpas? Quantas mulheres com crianças de colo precisaram de ajuda nos vagões do trem, e eu nada fiz? Quantos ceguinhos eu posso ter deixado de ajudar, simplesmente por pressa de chegar ao serviço?

Como posso ter passado estes últimos anos nessa rotina, e nunca ter percebido nada disso? Não me conformava. Não só por mim, mas também pelos outros. Como podiam todas aquelas pessoas no vagão discriminar tanto a mulher de branco, apenas pela roupa que ela usava, ou meu chefe não ter me poupado o atraso, mesmo sabendo dos meus motivos? Como podiam, pessoas que trabalham junto comigo, rir da minha situação ao sair da sala dele, tendo perdido a cesta básica e uma fração do meu salário? Quantos homens eram capazes de bater em uma mulher por motivos tão banais, ou venderem tão facilmente seus deveres e obrigações por alguma quantia em dinheiro? Como podia um homem ser capaz de desdenhar da vida, insinuando ser menos valiosa do que a realização de uma prova, ou passando no semáforo vermelho, quase atropelando uma criança?

Não conseguia acreditar em nada daquilo. Mas o que mais me perturbava era como e porque eu fui passivo a tudo aquilo, todos os dias, durante anos! Não podia ser assim. Tudo então ficou mais claro. Parecia que somente naquele dia eu havia realmente feito o que é designado pela primeira palavra deste texto. Parecia que somente neste dia eu havia ACORDADO e VIVIDO de fato. Estava, então, destinado a acordar e viver, realmente, todos os dias. Estava decidido a mudar tudo. Não só em mim, mas ajudar também as outras pessoas a acordarem e enxergarem o seu verdadeiro cotidiano, sendo capazes de analisar e mudar todas essas nossas terríveis ações, decisões e atitudes, que tomamos diariamente, sem perceber, provando para o mundo que nunca é tarde para vivermos O OUTRO LADO DA MOEDA.

2 comentários:

  1. Dia desses, na verdade esta semana ao observar certas coisas parecidas as descritas. Quis escrever sobre "gentileza". Até me veio na cabeça um sr. que no Rio de Janeiro ficou conhecido por este apelido depois do incendio no circo em 1982 em Niterói. Vou escrever algo depois do que li aqui pois me serviu de inspiração. Valeu!!!

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  2. A verdade é que somos egoístas e pensamos mais em nós mesmos que nos outros, admito que reclamo muito da minha vida, desconto minha raiva nos outros, fico nervosa por besteira, me irrito com as pessoas no ônibus, e várias vezes já me deparei com situações parecidas com as descritas no texto e pensei: quantas pessoas não passam por isso todos os dias e eu fico reclamando tanto da minha vida, que perto da delas é tão boa??? isso serve para que possamos refletir nas nossas atitudes, acho que devemos sempre nos colocar no lugar do outro antes de pensar ou agir de qualquer forma, será que eu gostaria de ser tratado assim se eu estivesse nessa situação??? Devemos começar a mudança por nós, nós devemos ser a mudança que queremos ver, a gente costuma esperar dos outros o que nem nós mesmos fazemos, Muito legal o texto Gu, bjos

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