terça-feira, 20 de novembro de 2018

O Outro Lado da Música 3 - Thank you God - Tim Minchin

Para contextualizar a música é importante trazer a história que Tim Minchin conta, em seus shows, antes de inicia-la:

“Ao longo dos anos, eu percebi que boa parte das pessoas vem pros meus shows particularmente porque eu canto bastante sobre crenças. Especificamente, no passado eu cantava muitas músicas sobre fé e religião. E pra ser completamente sincero com vocês eu zombava... Não no geral, mas de algumas coisas que se possa entender como hipócritas. Mas eu não quero que vocês fiquem esperando, porque eu não vou mais fazer isso.” ... “Algo me aconteceu quando eu estava na minha última turnê na Austrália.” ... “Estávamos em uma vibe ótima no bar, mas eu notei um cara que estava, desconfortavelmente, pairando na periferia do nosso grupo.” ... “Enfim, ele estava parado lá e eventualmente se aproximou.” ... “O nome dele era Sam.” ... “Ele era de Dandenong. Dos subúrbios de Dandenong que ficam em Dandenong Ranges ao sudeste de Melbourne.” ... “E então ele conseguiu me isolar do grupo e disse:
-‘Tim, eu sempre quis falar com você porque eu sou um fã do seu trabalho e não quero que você pense que eu me sinto ofendido, nem nada, mas, como você deve ter notado, eu sou um cristão.’” ... “’Eu sempre quis te perguntar por que... Por que você não acredita em Deus?’
E eu disse:
-‘Bem, Sam, eu não acredito em Deus pelo mesmo motivo que a maioria das pessoas que não acreditam em algo não acreditam, porque eu não tive provas o bastante para esclarecer minhas dúvidas.’”
...“E ele falou:
-‘Bem, Tim, se você quer provas, que tal isso?’
E ele me contou essa história. Essa história incrível sobre sua mãe. Sam e sua mãe eram membros de uma grande congregação evangélica em Dandenong.” ... “E quando fez 60 anos, a mãe do Sam foi ao médico com um problema nos olhos. Ele a diagnosticou com uma doença degenerativa irreversível nos olhos. E ele disse que se ela não fizesse uma cirurgia rápida poderia perder a visão. E a mãe do Sam ficou com medo. Ela não acreditava na medicina moderna nem confiava em médicos. Ela tinha medo de hospitais e de cirurgia.” ... “Sam e sua mãe foram para essa igreja, essa igreja incrível, e naquele domingo, a congregação toda dessa igreja, umas 1700 pessoas, rezaram ao mesmo tempo pela mãe do Sam. Na terça seguinte ela voltou no médico, e não havia sinais de que algo sequer esteve errado com seus olhos. Ela estava bem, ela estava curada. E o motivo dessa história ter me atingido é porque eu sempre tentei ser intelectualmente sincero comigo e com os outros. E tudo o que eu sempre pedi foi provas. E lá estava eu testemunhando a narrativa em primeira pessoa do que só pode ser descrito como um milagre. Então eu fui pra casa e escrevi essa música.”.

Thank you God - Letra:

I have an apology to make
I'm afraid I've made a big mistake
I turned my face away from you, Lord

I was too blind to see the light
I was too weak to feel Your might
I closed my eyes; I couldn't see the truth, Lord

But then like Saul on the Damascus road
You sent a messenger to me, and so
Now I've have had the truth revealed to me
Please forgive me all those things I said
I'll no longer betray you, Lord
I will pray to you instead

And I will say, thank you, thank you
Thank you, God
Thank you, thank you
Thank you, God

Thank you, God, for fixing the cataracts of Sam's mum
I had no idea, but it's suddenly so clear now
I feel such a cynic, how could I have been so dumb?
Thank you for displaying how praying works
A particular prayer in a particular church
Thank you Sam for the chance to acknowledge this
Omnipotent ophthalmologist

Thank you, God, for fixing the cataracts of Sam's mum
I didn't realize that it was so simple
But you've shown a great example of just how it can be done
You only need to pray in a particular spot
To a particular version of a particular god,
And if you pull that off without a hitch,
He will fix one eye of one middle-class white bitch

I know in the past my outlook has been limited
I couldn't see examples of where life had been definitive
But I can admit it when the evidence is clear,
As clear as Sam's mum's new cornea
(And that's extremely clear!)

Thank you, God, for fixing the cataracts of Sam's mum
I have to admit that in the past I have been skeptical
But Sam described this miracle and I am overcome!
How fitting that the sighting of a sight-based intervention
Should open my eyes to this exciting new dimension
It's like someone put an eye chart up in front of me
And the top five letters say: I C, G O D

Thank you, Sam, for showing how my point of view has been so flawed
I assumed there was no God at all but now I see that's cynical
It's simply that his interests aren't particularly broad
He's largely undiverted by the starving masses,
Or the inequality between the various classes
He gives you strictly limited passes,
Redeemable for surgery or two-for-one glasses

I feel so shocking for historically mocking
Your interests are clearly confined to the ocular
I bet given the chance, you'd eschew the divine
And start a little business selling contacts online

Fuck me Sam, what are the odds
That of history's endless parade of gods
That the God you just happened to be taught to believe in
Is the actual one and he digs on healing,
But not the AIDS-ridden African nations
Nor the victims of the plague, nor the flood-addled Asians
But healthy, privately-insured Australians
With common and curable corneal degeneration

This story of Sam's has but a single explanation
A surgical God who digs on magic operations
No, it couldn't be mistaken attribution of causation
Born of a coincidental temporal correlation
Exacerbated by a general lack of education
Vis-a-vis physics in Sam's parish congregation
And it couldn't be that all these pious people are liars
It couldn't be an artefact of confirmation bias
A product of groupthink
A mass delusion
An Emperor's New Clothes-style fear of exclusion

No, it's more likely to be an all-powerful magician
Than the misdiagnosis of the initial condition
Or one of many cases of spontaneous remission
Or a record-keeping glitch by the local physician

No, the only explanation for Sam's mum's seeing
They prayed to an all-knowing superbeing
To the omnipresent master of the universe
And he quite liked the sound of their muttered verse

So for a bit of a change from his usual stunt
Of being a sexist, racist, murderous cunt
He popped down to Dandenong and just like that
Used his powers to heal the cataracts of Sam's mum
Of Sam's mum

Thank you God for fixing the cataracts of Sam's mum!
I didn't realize that it was such a simple thing
I feel such a dingaling, what ignorant scum!

Now I understand how prayer can work
A particular prayer in a particular church
In a particular style with a particular stuff
And for particular problems that aren't particularly tough,
And for particular people, preferably white
And for particular senses, preferably sight
A particular prayer in a particular spot
To a particular version of a particular god

And if you get that right, he just might
Take a break from giving babies malaria
And pop down to your local area
To fix the cataracts of your mum!


Obrigado Deus – Tradução:

Eu tenho um pedido de desculpa a fazer
Receio ter cometido um grande erro
Me afastei de ti, Senhor

Estava muito cego para ver a luz
Estava muito fraco para sentir seu poder
Fechei meus olhos; eu não conseguia ver a verdade, Senhor

Mas então como com Saulo na estrada de Damasco
Enviaste um mensageiro para mim, e então
A verdade a mim foi então revelada
Por favor, perdoe-me por todas aquelas coisas que disse
Não te trairei mais, Senhor
Invés disso rezarei para ti

E direi: obrigado, obrigado
Obrigado, Deus
Obrigado, obrigado
Obrigado, Deus

Obrigado, Deus, por curar a catarata da mãe do Sam
Não tinha nem ideia, mas de repente está tão claro
Me sinto um cínico, como pude ser tão estúpido?
Obrigado por mostrar como rezar funciona
Uma oração específica em uma igreja específica
Obrigado, Sam, pela chance de reconhecer este
Oftalmologista onipotente

Obrigado, Deus, por curar a catarata da mãe do Sam
Nem sabia que era tão simples
Mas você me mostrou um bom exemplo de como pode ser feito
Só precisa rezar em um lugar específico
Para uma versão específica de um deus específico
E se você conseguir fazer isso, sem problemas
Ele irá curar um olho de uma vadia branca de classe média

Eu sei que anteriormente minha perspectiva era limitada
Eu não conseguia ver exemplos onde a vida era definitiva
Mas eu posso admitir quando a evidência é clara
Tão clara quando a nova córnea da mãe do Sam
(E isso é extremamente claro!)

Obrigado, Deus, por curar a catarata da mãe do Sam
Tenho que admitir que no passado eu era cético
Mas Sam descreveu esse milagre e agora estou convencido
Quão apropriado a visão de uma intervenção na visão
Pode abrir meus olhos para essa nova dimensão emocionante
É como se alguém colocasse uma tabela optométrica na minha frente
E as primeiras cinco letras fossem: “E U V E J O D E U S”

Obrigado, Sam, por me mostrar como meu ponto de vista era tão falho
Assumi que Deus não existia, mas agora percebo o cinismo
Acontece que os interesses dele não são necessariamente amplos
Ele é largamente desinteressado pelas massas famintas
Ou a desigualdade entre as várias classes
Ele nos dá cupons rigorosamente limitados
Reembolsáveis em cirurgias ou "dois óculos pelo preço de um".

Me sinto tão chocado por zombar historicamente
Seus interesses são claramente limitados aos oculares
Aposto que dada a oportunidade, Você se afastaria do divino
E começaria um pequeno negócio para vender lentes de contato online

Puta merda Sam, quais são as chances
Que do desfile histórico e interminável de deuses
O Deus que aconteceu de você ser ensinado a crer
Ser o verdadeiro e ainda ser o que manja das curas
Mas não das nações africanas assoladas pela AIDS
Nem das vítimas da praga, nem dos asiáticos inundados
Mas de australianas saudáveis e com plano de saúde
Com degeneração - comum e curável - da córnea

Esta história do Sam tem uma simples explicação
Um deus cirurgião que manja de operações mágicas
Não, não pode ser um erro na atribuição da causa
Que surgiu de uma coincidente correlação temporal
Agravada por uma falta de instrução geral
Vis-a-vis físico na congregação paroquial do Sam
E também não pode ser que todas aquelas pessoas piedosas sejam mentirosas
Nem ser um artefato do viés de confirmação
Um produto do pensamento coletivo
Uma ilusão em massa
Um medo de exclusão como acontece na fábula "A Roupa Nova do Rei"

Não, é mais provável que seja um mágico todo poderoso
Que o diagnóstico equivocado da condição inicial
Ou um dos muitos casos de remissão espontânea
Ou uma falha ao manter os registros no consultório

Não, a única explicação para a mãe de Sam ver
Eles oraram para um ser supremo onisciente
Para o mestre onipresente do universo
E ele meio que gostou dos sussurros

Então, para mudar um pouco seus hábitos costumeiros
De ser sexista, racista, feminicida
Ele apareceu lá em Dandenong e num passe de mágica
Usou seus poderes para curar a catarata da mãe do Sam
Da mãe do Sam

Obrigado Deus por consertar a catarata da mãe do Sam
Não percebi que era uma coisa tão simples
Me sinto como um pinto mole, um merda ignorante

Agora eu entendo como uma oração funciona
Uma oração específica, em uma igreja específica
Com um estilo específico, com conteúdo específico
E para problemas específicos, que nem são tão difíceis assim
E para pessoas específicas, de preferência brancas
E para sentidos específicos, de preferência a visão
Uma oração específica, em um lugar específico
Para uma versão específica, de um deus específico

E se você fizer tudo certo, ele até pode
Dar uma pausa de dar malárias às crianças
E aparecer no seu bairro
Para curar a catarata da sua mãe!



Uma das linhas de pensamento mais importantes para quem já iniciou todo um processo de autoquestionamento em relação à suas próprias crenças, ou a crenças em geral, e que pode funcionar – da maneira como ocorreu comigo – como a última pá de terra no túmulo de sua fé, é trazida ao longo de toda esta canção. Essa simples e ao mesmo tempo complexa linha de pensamento consiste em um profundo entendimento, na extrapolação em último nível do corolário de Carl Sagan, que afirma que “alegações extraordinárias exigem evidências extraordinárias”.

Nesta discussão, diversos conceitos entram em jogo, muitos deles já discutidos em outros textos neste blog, mas passaremos por cada um deles que for necessário, para enriquecermos esta que é uma das discussões mais interessantes deste blog, baseada em uma das letras de música mais geniais já escritas em todos os tempos. Sem mais delongas, vamos destrinchar a citação de Sagan e descobrir o quão intimamente ligada à letra da música de Tim ela está.

Vivemos afirmando coisas. O tempo todo, ou estamos alegando coisas, ou estão alegando coisas para nós: o mundo é redondo, o céu é azul, a água é liquida, o açúcar é doce, o sal é salgado. Praticamente tudo o que aprendemos sobre tudo, desde crianças, é através de alegações que outras pessoas estão fazendo. Mas tão importante quanto ouvir estas alegações é aprender quais destas alegações são verdadeiras e quais são falsas, e como detectar isto e, infelizmente, este ensinamento não é tão comum nas escolas, tampouco valorizado socialmente.

Toda e qualquer alegação que é feita, necessita de argumentos que a suportem. Em outras palavras, a explicação de cada afirmação que fazemos é tão ou mais importante do que a própria afirmação, pois é ela que nos trará a medida do quão verdadeira, falsa ou confiável é tal afirmação. É simples: se eu afirmo que “eu peso mais de cinquenta quilos”, a maneira mais fácil de mostrar que minha afirmação é verdadeira é mostrando os números da balança que estiver registrando meu peso, para a pessoa a quem eu estiver fazendo esta alegação. Neste caso, meu argumento é irrefutável, pois trata-se de uma evidência concreta, uma prova de que minha alegação é verdadeira. Mas nem sempre é tão fácil assim.

Os argumentos que sustentam cada alegação nem sempre são concretos, e podem ter infinitos níveis de confiabilidade e veracidade. Imagine que, por exemplo, eu alego ter avistado uma criatura que acredito ser o Pé-Grande, em uma das viagens que eu fiz. No entanto, não consegui fotografar nem filmar. Além disso, estava sozinho na ocasião, e o avistei bem de longe. Foi uma aparição rápida e logo ele desapareceu no meio da mata. Quais são meus argumentos neste caso, além da minha própria palavra, da minha experiência pessoal? Por mais idôneo que possa ser meu caráter, as diversas falhas em nosso sistema ocular e a forma como nosso cérebro funciona, amplamente estudadas, além das características vagas do relato, como ter acontecido em um curto período de tempo e há uma longa distância diminuem muito a confiabilidade dos argumentos e, consequentemente, da probabilidade desta alegação ser verdadeira.

Vamos aprofundar a análise, pois entraremos agora no ponto crucial desta linha de pensamento: a batalha de probabilidades. Considerando ainda o último exemplo dado, as vagas características do relato abrem um leque de possibilidades, uma infinidade de alternativas, onde em cada uma delas meu relato estaria errado de uma maneira diferente. Vejamos.

Por ter sido uma aparição muito rápida, podemos considerar as possibilidades de ter sido apenas uma impressão de ter avistado um vulto pelo canto do olho, uma sombra de algum pássaro que voava alto passando pelo sol, a falsa impressão de que algo se move enquanto nós estamos em movimento, entre outras possibilidades. Já a característica de ter sido um avistamento de longe, nos despeja uma tonelada de possibilidades, como o efeito psicológico de pareidolia, ter sido um animal qualquer como um urso ou macaco, ter sido apenas uma outra pessoa, alucinação leve causada por um possível medo de estar naquele local sozinho, etc.

Cada uma destas possibilidades forma nosso montante, nosso pool de possíveis explicações para este relato, onde em cada uma delas meu relato é falso em pelo menos algum aspecto, exceto na possibilidade de ter realmente sido o Pé-Grande, mas é agora que entra a parte mais importante da análise: as probabilidades individuais.

Suponha que ao todo, existam 100 possibilidades diferentes, um total de cem diferentes explicações para o relato – onde 99 explicam o avistamento de uma maneira diferente da minha explicação, e 1 é justamente o relato em si. Se todas as cem possibilidades tiverem a mesma probabilidade de estar correta, cada uma das alternativas teria 1/100 = 0,01 = 1% de chance de estar correta, no entanto, elas não têm a mesma probabilidade!

Este é justamente o entendimento, a extrapolação em último nível citado do corolário de Sagan: alegações extraordinárias exigem evidências extraordinárias! Uma alegação extraordinária que envolve o avistamento de uma criatura mítica denominada de Pé-Grande, carrega consigo dezenas, centenas ou até milhares de afirmações junto. Pense comigo, para que a criatura que eu tenha avistado seja, de fato, o Pé-Grande, então deve-se também ser verdade que:

1.       O Pé-Grande existe (como nasceu/surgiu?).
2.       Ele consegue sobreviver de alguma forma em algum lugar (De que se alimenta? Como se defende?).
3.       Ele vive há centenas de anos (pois foi avistado há mais de cem anos) ou ele deixou descendentes (Como se reproduzem?).
4.       Se deixou descendentes, havia mais de um, sendo no mínimo um macho e uma fêmea (Como nasceram/surgiram?)
5.       Ele se deslocou, a pé, do último local onde ele foi avistado até aquele local (o que pode significar distâncias de milhares de quilômetros em curtos períodos de tempo).
...

Cada uma destas afirmações, como vimos, levantam outros questionamentos, que por sua vez encadeiam mais alegações, de maneira que, para que a minha alegação inicial esteja correta, todas estas outras alegações altamente improváveis devem estar corretas junto, levando sua probabilidade de ser correta muito (muito mesmo) próxima de zero. Em outras palavras, a minha afirmação, por ser uma alegação especial pois envolve um ser mítico com diversas características bizarras, carrega diversas outras alegações que também devem estar, todas, corretas, formando um conjunto de alegações extremamente improváveis de ser verdadeiras, tem uma probabilidade de ser verdadeira infinitamente menor do que cada uma das outras 99 alternativas.

É exatamente esta análise que Tim Minchin, de uma maneira genial e muito sarcástica, faz nesta música, mudando apenas o contexto – trata-se de uma alegação ainda mais improvável que a de nosso exemplo, onde o relato afirma que ocorreu uma cura milagrosa de uma doença ocular degenerativa irreversível feita por Deus.

Assim como em nossa análise, a sucessão de alegações agregadas à alegação de Sam é exposta do início até o fim da música. Para que ele esteja certo, então deve ser verdade também que:

1.       Deus existe (o deus bíblico com todas suas características, somente Ele em detrimento a todos os outros milhares de deuses em que já se acreditaram e acreditam até hoje, provenientes de outros milhares de sistemas de crenças que não são o cristianismo).
2.       Ele atende preces seletivamente – apenas um tipo específico de oração, em uma congregação específica é atendida (por que?).
3.       Ele não cura ativamente outros diversos tipos de doenças em outras oportunidades (por que?).
4.       Ele não resolve, de forma ativa como no exemplo de Sam, problemas de larga escala como a fome e vítimas de desastres naturais (por que?).
5.       Ele resolve apenas problemas que não são humanamente impossíveis, ou extremamente difíceis de ser resolvidos, como membros amputados ou paralisados crescerem novamente ou voltarem a funcionar normalmente (por que?).
...

Em contrapartida, da mesma forma como fizemos com nosso exemplo, Tim cita diversas possibilidades alternativas que também serviriam de explicação para o ocorrido, como um erro de diagnóstico médico na causa ou no que originou a doença, o efeito psicológico do viés de confirmação ou de pensamento coletivo, o fenômeno de ilusão em massa, o comum efeito clínico de remissão espontânea ou até uma troca acidental de documentos no hospital que pode ter ocorrido ocasionando um diagnóstico de uma pessoa sendo passado para outra. Cada uma dessas alternativas é infinitamente mais provável do que a alegação especial de Sam, que necessita de uma explicação, como vimos acima, bastante especial.

Por fim, devemos enfatizar também que o trabalho de encontrar as “evidências extraordinárias” que sustentem qualquer “alegação extraordinária” deve ser única e exclusivamente de quem a enunciar. Este é o conceito do ônus da prova, que afirma que: “ao debater sobre qualquer assunto, existe o ônus implícito da necessidade de uma prova que cabe à pessoa que está fazendo uma afirmação”.

Em outras palavras, afirmações que atribuam um valor de verdade a uma proposição precisam de provas que sustentem tal qualificação. Afirmar a existência ou a inexistência de algo, afirmar o funcionamento ou não funcionamento de um método ou afirmar a presença ou ausência de uma característica: todas estas afirmações oneram o proponente com a necessidade de provas que as sustentem. Dessa maneira, a afirmação de Sam permanece inválida frente às outras possibilidades evidenciadas por Tim, até que o próprio Sam, pessoa que faz a alegação, a prove.


Enfim, de uma forma bastante divertida, inteligente e crítica na medida certa, a música Thank you God nos dá uma aula do porquê milagres não existem, ou melhor, têm 99,999...% de chances de não serem verdades frente a qualquer outra possível explicação para o tal fenômeno.

Música com a história de contextualização: https://www.youtube.com/watch?v=B494y6DMmAk.

sábado, 8 de setembro de 2018

10 centavos - A religião é a questão - Parte 2

Pré-requisito (obrigatório): A religião é a questão - Parte 1

Autor: Gustavo Spina


Na primeira parte deste tema, iniciamos a discussão apresentando algumas questões sobre alegações inerentes à própria religião, e as respostas dadas pelo Dr. William Lane Craig, evidenciando que, na tentativa de explicar a si mesmo, o cristianismo, exemplo de religião escolhida por nós para ser tratado nestes textos, acaba por gerar ainda mais dúvidas, em vez de conseguir de fato responder às questões.

Nesta segunda parte, vamos dar continuidade apresentando outras duas questões direcionadas e respondidas por Craig, em seu site. Entretanto, as questões apresentadas neste texto, não são inerentes à própria religião, mas sim sobre assuntos externos à ela, a fim de investigarmos como a religião se sai ao tentar explicar às questões sobre assuntos extrínsecos a si mesma.

Questão 3 – Dr. Craig, você parece defender que Deus exista fora do tempo quando não há universo [Deus (a)] e dentro do tempo quando há um universo [Deus (b)]. Minha questão é: qual dos dois criou o Universo?
Deus (a) não pode criar o universo porque um ser atemporal não “cria” [“criar” é uma ação temporal].
Deus (b) não pode criar o universo porque um ser que exista no tempo não pode criar o tempo no qual Ele existe. Blake. [Questão enviada a Craig por um fã]. [1]

Resposta dada por Craig: “Eu me pergunto se você percebeu, Blake, que você acabou de apresentar um argumento que diz que o Cristianismo é incoerente ao dizer que Deus criou o Universo? Deus pode ser temporal ou atemporal, e, de acordo com o seu argumento, criação não faz sentido em nenhuma das alternativas! Isso é realmente bastante para a doutrina da criação.

O problema de Deus, tempo e criação é complicado, e eu vim a propor a visão que defendo em “God, Time, and Eternity” (Kluwer, 2001) e em “Time and Eternity” (Crossway, 2001) precisamente para resolver esse enigma.

Primeiro vamos lidar com a visão que eu proponho. Ao descrever minha posição como “Deus existe fora do tempo quando não há Universo e dentro do tempo quando há um universo”, seu uso da palavra “quando” pode levar a um desentendimento. Se tomada literalmente, isso implicaria que havia tempo antes da criação do Universo. Eu penso que o tempo começou com o primeiro evento, o qual eu tomo para ser a primeira ação criativa de Deus. Então eu prefiro afirmar da seguinte maneira: Deus é atemporal sem o Universo e temporal com o Universo.

A razão pela qual eu defendo que Deus é atemporal sem o Universo é porque penso que um infinito regresso de eventos é impossível e, de acordo com a teoria relacional do tempo, na falta de quaisquer eventos o tempo não existiria. A razão pela qual eu defendo que Deus é temporal desde o início do Universo é que a criação do Universo traz Deus a uma nova relação, isto é, co-existindo com o Universo, e tal mudança extrínseca sozinha (sem mencionar Deus usando de seu poder causal) é suficiente para uma relação temporal.

E, é claro, isso não leva a dizer que Deus (a) e Deus (b) são dois “Deus”, mas uma única entidade descrita em dois diferentes estados.

Então vamos considerar primeiro a segunda parte do seu dilema: “Deus (b) não pode criar o universo porque um ser que exista no tempo não pode criar o tempo no qual Ele existe.” Um argumento similar para a atemporalidade divina foi oferecido pelo filósofo da Universidade de Oxford Brian Leftow, então você está em boa companhia! Mas na minha opinião, entretanto, essa assertiva é falsa (veja God, Time, and Eternity, pgs. 19-23). Leftow pensa que se Deus é contingentemente temporal, Ele não pode em um tempo t criar t porque sua ação em t depende da existência de t: a existência de t é explicativamente anterior à ação de Deus em t. Eu não concordo. Numa teoria relacional do tempo, tempo é logicamente posterior à ocorrência de algum evento. Então em uma teoria relacional do tempo, a ação de Deus é explicativamente anterior à existência do tempo. Tudo que Deus tem que fazer é agir e o tempo é gerado como uma consequência. Deus pode tanto criar t como existir em t.

Agora considere a primeira parte do seu dilema: “Deus (a) não pode criar o universo porque um ser atemporal não “cria” [“criar” é uma ação temporal].” Como os filósofos medievais bem apontaram, nós devemos distinguir dois sentidos bem diferentes para essa afirmação:

1 Não-possivelmente (Deus é atemporal & Deus cria o Universo), e

1’ Deus é atemporal & não-possivelmente (Deus cria o Universo)

A ambiguidade na primeira parte do seu dilema é como a ambiguidade na sentença “Não é possível para a Casa Branca ser marrom” - nós queremos dizer que “Não é possível para a Casa Branca ser branca e também ser marrom” ou que “Não é possível para a Casa Branca vir a ser marrom”? Entender no sentido da primeira sentença é verdadeira, mas entender no sentido da segunda é falso.

Então pense sobre (1). Pensar se é possível para Deus ser atemporal e juntamente criar o Universo vai depender, estou convencido disso, da sua teoria do tempo. De acordo com a normalmente chamada Teoria-A do tempo, tornar-se temporal é uma característica real e objetiva do mundo, e as coisas vem e vão em ser. Mas em uma Teoria-B do tempo ou em uma teoria “tenseless”, todos os eventos e momentos são igualmente reais, e tornar-se temporal é uma ilusão da consciência humana. Agora em uma Teoria-B do tempo eu penso que é fácil ver como Deus criou o Universo no sentido de que o Universo contingentemente depende de Deus para a sua existência. Toda variedade de quatro-dimensões de espaço e tempo apenas existem em bloco nessa visão, e Deus existe “fora” do bloco e sustenta sua existência. Nessa visão criar não é necessariamente uma ação temporal; Deus poderia criar atemporalmente. Então (1) é falso.

Por outro lado, se você adota uma teoria-A do tempo, e eu estou fortemente inclinado a aceitar, então (1) é verdadeiro. Então no primeiro momento de sua existência o universo passa a existir. A relação causal de Deus com esse evento será nova nesse momento, e então Deus deve ser temporal nesse momento. Nessa visão criar verdadeiramente é, como você diz, uma ação temporal e logo em criando o Universo Deus deve ser temporal. Então em uma Teoria-A, (1) parece ser verdadeiro.

Mas e que tal (1’) em uma Teoria-A do tempo? Se Deus é atemporal, ele é incapaz de criar o Universo? Ele está de alguma maneira aprisionado na sua atemporalidade, congelado em imobilidade? Eu não vejo razão para pensar que sim. A afirmação de que, se Deus é atemporal, é impossível para ele criar o Universo é baseada no pressuposto que a atemporalidade é uma propriedade essencial, ao invés de contingente, de Deus. Mas como no caso da cor da casa, eu não vejo razão para que Deus ser temporal ou atemporal ser uma característica contingente, dependendo de Sua vontade. Existindo atemporal sozinho sem o Universo, Ele poderia “segurar-se” de criar o Universo e continuar atemporal; ou Ele poderia querer criar o Universo e passar a ser temporal no seu primeiro exercício de poder causal. Isso depende Dele.

Então na visão que eu proponho, Deus existe atemporalmente sem o Universo com uma intenção atemporal de criar um Universo com um início. Ele exercita Seu poder causal, e como resultado o tempo passa à existência, junto com o primeiro estado do Universo, e Deus livremente entra no tempo. Tudo isso acontece co-incidentalmente, isto é, tudo junto de uma vez. Essa é, como eu vejo, uma solução quebra-cabeça, mas me parece mais plausível que as alternativas.” [1]


A confusão e o malabarismo pseudocientífico e filosófico que Craig faz, nesta longa e tortuosa tentativa de resposta, é digna até de, em alguns momentos, umas boas risadas. No desenvolvimento de suas ideias, para que o objetivo de sua resposta pudesse ser atingido, ele utiliza de tantos artifícios lógicos com os conceitos de temporalidade e atemporalidade que se esquece, novamente, de evitar erros básicos e simples provenientes de seu complexo brainstorm.

Vamos nos atentar especificamente para seu erro na passagem entre a atemporalidade para a temporalidade de Deus e do Universo pois, isto posto, todo o resto de sua argumentação perde sua validade, por consequência. Vejamos.

O problema discutido aqui, se tratado de forma genuinamente cientifica, não fica tão difícil de se entender. A origem do Universo é considerada, cientificamente, o primeiro evento ocorrido e, como Craig bem afirma: se não há evento nenhum ocorrendo, se não há nenhuma mudança de estado ou propriedade de algo, então o tempo não existe. Como não há, até então, nenhuma evidência que suporte qualquer afirmação sobre ter existido algo antes do Universo, logo, assumimos que o primeiro evento que aconteceu foi a própria origem do Universo, e a teoria mais aceita, o Big Bang, sustenta que isto ocorreu por meio da explosão do átomo primordial e, como este é um evento, uma mudança de estado e de propriedades, foi neste mesmo momento singular que o tempo surgiu, há cerca de 13,8 bilhões de anos atrás.

Portanto, o que quer que possamos entender ou imaginar que tenha existido antes do Universo, deve ser necessariamente atemporal, pois o tempo veio a existir juntamente com a origem do Universo. Obviamente esta é uma explanação muito breve e curta, de uma teoria que se mantém na ciência como uma das maiores e principais, baseada em milhares de fatos, e centenas de anos de estudo; no entanto, o suficiente para entendermos o pequeno erro da argumentação feita por Craig.

Tendo o surgimento do tempo e do Universo havido em um momento único, fato que Craig argumenta a favor no trecho “...Se tomada literalmente, isso implicaria que havia tempo antes da criação do Universo. Eu penso que o tempo começou com o primeiro evento, o qual eu tomo para ser a primeira ação criativa de Deus.“, tudo o que imaginarmos que pudesse haver antes disso era, por definição, atemporal, caso contrário o tempo haveria surgido antes do início do Universo.

Por diversos motivos, como por exemplo o fato de ainda ser uma grande lacuna científica onde a religião ainda consegue, com todo este esforço que vimos acima, espremer seus contos de fada; Craig, ou melhor, a religião pela qual ele se sente na obrigação de ser porta-voz, acredita que o que havia antes da existência do Universo era justamente Deus.

Mas é aí que está o pequeno deslize, que gera uma grande contradição: como é que pode Deus ter sido atemporal? Deus ter sido atemporal implica em ter apenas existido, sem nenhuma mudança de estado, sem ter tido nenhum pensamento, nem uma intenção sequer. Mas será que isto é possível?

Toda e qualquer ação pressupõe intenção. Se Deus veio a criar o Universo, antes disso, deve ter havido a intenção, como o próprio Craig afirma no trecho “na visão que eu proponho, Deus existe atemporalmente sem o Universo com uma intenção atemporal de criar um Universo com um início. Ele exercita Seu poder causal, e como resultado o tempo passa à existência, junto com o primeiro estado do Universo, e Deus livremente entra no tempo...”, sem perceber a incoerência intrínseca de seus argumentos.

No exato momento que Deus tem a intenção de criar o Universo, ou que exercita seu poder causal, ou mesmo antes em qualquer momento em que tenha tido consciência de si próprio ou de seus planos os quais os religiosos tanto falam, o tempo teria surgido através dessa mudança de estado. Deus, um ser consciente e com tantas propriedades complexas, portanto, não pode ter existido e tomado atitudes antes do Universo pois, dessa forma, não teria sido atemporal.

E isto não se trata de sua onipotência, veja bem. Por mais que a onipotência possa ser definida como o poder de fazer tudo, há sim um limite, e isto não deve soar tão estranho. Este limite é justamente o limiar entre o possível e o impossível. Deus ser onipotente significa que ele pode fazer tudo, mas somente tudo o que é possível. Deus não pode simplesmente fazer um triângulo redondo, por exemplo, pois por definição um triângulo não é redondo e, portanto, não é possível de ser feito. Da mesma forma, não pode ter criado o Universo sem uma intenção, pois toda ação pressupõe intenção, tampouco ter tido uma intenção sem causar uma mudança de estado, e ocasionado o início do tempo, pois isto seria impossível. Coisas ilógicas não são factíveis, mesmo por quem possa fazer tudo. Dessa forma, falar que Deus teve uma “intenção atemporal” é tão infantil filosoficamente quanto dizer que tenha criado um “triângulo redondo”.

Podemos concluir, dado o que discutimos, que o único modo possível de Deus ter existido antes da origem do Universo, para que pudesse tê-lo criado, seria como uma forma imutável, completamente estática, para que pudesse ser atemporal: sem intenções, pensamentos, sem nada, apenas um amontoado de propriedades complexas absolutamente estagnadas.

Sua primeira e única ação, deve ter sido a da criação do Universo e, mesmo assim, pressuposta pela sua intenção de fazê-lo, o que ocasionaria na criação do tempo um instante antes da criação efetiva do Universo. Este fato talvez gerasse outras incoerências e impossibilidades, no entanto, parece que não é isto o que Craig e sua religião parecem acreditar.

Dessa forma, a argumentação desenvolvida por Craig na tentativa de explicar a origem do Universo através da religião é confusa, irrisória e ilógica, gerando uma infinidade de dúvidas ainda mais complicadas que a primeira. Neste caso, não formularei os exemplos de questões que são geradas pela sua tentativa de resposta. Deixarei que o leitor o faça e as deixe aqui nos comentários, evidenciando que, mais uma vez, esta “resposta” gerou mais dúvidas do que certezas.


Questão 4 – Podemos ser bons sem Deus? [2]

Resposta dada por Craig: “Eu acho que é importante em relação a valores morais que façamos uma distinção entre “valores morais objetivos” e “valores subjetivos”. Por “valores morais objetivos” eu me refiro a valores morais que são válidos e obrigatórios independentemente de qualquer pessoa acreditar neles ou não. Valores subjetivos seriam expressões de preferências pessoais, como “baunilha é mais gostoso que chocolate”. Isso pode ser verdade para você, mas não é verdade para mim. Estes são valores subjetivos. Mas o que eu argumento é que se não existe nenhum Deus, então não existe nenhum valor moral objetivo na vida. Na ausência de Deus, os valores morais parecem ser ou simples expressões de preferência pessoal ou então subprodutos de evolução biológica social. Assim como uma tropa de babuínos exibirá comportamentos cooperativos e altruístas, porque a seleção natural determinou que isto é vantajoso na luta pela sobrevivência, então seus primos primatas homo sapiens evoluíram um tipo de moralidade rude que é útil na propagação da nossa espécie. Mas não parece haver nada nos Homo Sapiens que torne esta moralidade objetivamente verdadeira. Se você voltar a fita do filme da evolução e soltá-la novamente um tipo diferente de criatura poderia ter evoluído, com um conjunto diferente de valores morais, e seria arbitrário se nós pensássemos que nossos valores morais são objetivos e verdadeiros em comparação, com os valores das outras criaturas. Pensar que os seres humanos são de alguma forma especiais e que sua moralidade é objetivamente verdadeira parece ser mero especicismo, que é simplesmente uma inclinação e uma preferência injustificada em relação à nossa própria espécie. Então me parece que sem Deus como uma âncora transcendente para os valores e deveres morais, então simplesmente não existem certo ou errado objetivos. Bem ou mal. Tudo se transforma em relativismo social e cultural, e não há ninguém que possa dizer se ela está certa e eu estou errado. Agora, isso tem consequências profundas. Isto significa que nós não podemos dizer que estupro, abuso infantil, tortura, infanticídio, injustiça e discriminação racial são realmente errados. Também não podemos dizer que amor, tolerância, abertura de mente, auto sacrifício e caridade são realmente bons, pois em um universo sem Deus coisas como bem ou mal não existem." [3]


Nesta última questão que analisaremos, Craig trata o dilema da moralidade, demonstrando a tentativa religiosa de explicar as questões acerca de nossos valores morais e da existência do bem e do mal. Aqui, por sorte, sua argumentação é construída de forma muito mais simples e fácil de entender, sem tantos malabarismos argumentativos como na questão anterior, e nossa análise seguirá o mesmo caminho.

A discordância, neste caso, não está no desenvolvimento de sua argumentação, mas em suas premissas e conclusão. Concordo com Craig em quase toda sua linha de pensamento: suas definições de valores morais objetivos e subjetivos me parecem corretas, de fato tem razão ao dizer que “não parece haver nada nos Homo Sapiens que torne esta moralidade objetivamente verdadeira” e, por fim, é absolutamente sensato ao dizer que “sem Deus como uma âncora transcendente para os valores e deveres morais, então simplesmente não existem certo ou errado objetivos. Bem ou mal. Tudo se transforma em relativismo social e cultural”.

Tudo vai indo bem até que ele conclui: “Isto significa que nós não podemos dizer que estupro, abuso infantil, tortura, infanticídio, injustiça e discriminação racial são realmente errados. Também não podemos dizer que amor, tolerância, abertura de mente, auto sacrifício e caridade são realmente bons, pois em um universo sem Deus coisas como bem ou mal não existem”. Às vezes me pergunto se uma pessoa com um currículo tão invejável quanto o dele cometeria erros tão bobos, ou se se trata realmente de desonestidade intelectual com o intuito de induzir e forçar argumentos para que algo que não é racional passe a ser. Acompanhe comigo.

Em seu desenvolvimento ele argumenta corretamente que sem a existência de Deus não existem certo, errado, bem ou mal objetivos. Mas, ao concluir afirma que, sem Deus, bem ou mal não existem. Percebe a diferença? Dizer que bem ou mal não existem é MUITO DIFERENTE de dizer que bem ou mal OBJETIVOS não existem. Este último está correto, mas o primeiro está completamente errado.

Dessa forma, isto NÃO significa que nós não podemos dizer que estupro e todos os outros maus exemplos que ele deu são realmente errados, e que amor e todos os outros bons exemplos que ele deu são realmente bons. Nós podemos SIM dizer isto, baseando-se justamente em nossos valores morais subjetivos!

Ao mesmo tempo em que sua argumentação é, por um lado, especicista, como ele mesmo aponta, é também, por outro, derrotista, pois afirma que sem Deus como uma âncora transcendente para valores morais estaremos para sempre perdidos, como se fôssemos incapazes de construir um sistema moral, baseado em nossos próprios pensamentos e em nossa carga genética evolutiva. Não me parece que é isto o que acontece, quando olho ao meu redor e vendo nossa atual sociedade, que por mais defeitos que possua, está sendo construída há milhões de anos, desde muito antes da existência da Bíblia e que, ainda bem, proíbe diversas práticas provindas da moral que reside dentro daquelas páginas antigas e obsoletas.

Enfim, sem grande esforço podemos retirar da resposta dada as seguintes questões, por exemplo:

  1. Quantos valores morais objetivos existem?
  2. Quais são eles?
  3. Todos eles são apresentados dentro da Bíblia?
  4. O que pensar dos valores morais objetivos apresentados pelas outras religiões?
  5. Visto que a humanidade existe há milhões da anos e a Bíblia só existe há poucos milhares, como podemos saber se haverá ainda mais valores morais objetivos a serem apresentados a nós, em algum outro livro, no futuro?

Por fim, apresentamos diversas questões, intrínsecas e extrínsecas à religião, e sua tentativa de responde-la. Para exemplificar, escolhemos o cristianismo, e seu porta-voz Dr. Craig, mas o resultado há de ser semelhante para qualquer outra religião e porta-voz que escolhermos, arbitrariamente. Evidenciamos, com este exercício, que, mesmo não nos atentando para a validade em si de suas afirmações, considerando apenas o objetivo da religião de prover respostas às mais diversas e complexas questões que a humanidade formular, ela falha, gerando cada vez mais e mais questionamentos, seja acerca de suas próprias afirmações, seja acerca de questões externas a si mesma.

Mostramos então, após esta longa conversa, que a religião não é, entre muitas outras coisas, a resposta, ela é apenas mais uma questão.

Estes foram meus 10 centavos acerca das respostas dadas pelas religiões à todo e qualquer questionamento.




[3] - https://www.youtube.com/watch?v=Y-TpcLc1QFk Acesso em: 08/09/2018

sábado, 25 de agosto de 2018

A Sociedade do Outro Lado 2 - A origem da moeda

Pré-requisito (obrigatório): A Sociedade do Outro Lado 1

Autor: Gustavo Spina

Uma das características mais fortes e universais das sociedades criadas pelo ser humano até então é a moeda. A moeda, no sentido de unidade de troca e objeto universal de medida do valor de bens materiais, esteve presente em quase todas as configurações sociais humanas, se consolidando e atuando no papel principal do atual sistema capitalista em sua forma final, a qual conhecemos popularmente como o dinheiro. Neste texto, iniciaremos efetivamente a construção de nossa nova configuração social, com o início do desenvolvimento da ideia que será o primeiro dos grandes pilares que sustentarão nossa sociedade – a obliteração da moeda – mas para que isto seja possível, precisamos primeiro aprender sobre a origem da moeda.

Vamos estudar as origens da moeda para podermos entender os motivos pelos quais ela teve de surgir, e isto nos dará bons insumos para conseguirmos desenvolver uma sociedade onde ela simplesmente não seja necessária. Vamos, então, analisar.

Quando os humanos eram caçadores-coletores, e mesmo após o início da Revolução Agrícola, a maioria das pessoas viviam em pequenas e íntimas comunidades. Cada bando, e mais tarde, cada aldeia, tinha uma unidade econômica autossuficiente, mantida por obrigações e favores mútuos, além de um pouco de escambo com forasteiros. Citando novamente o fabuloso livro Sapiens – Uma breve história da humanidade, Yuval Harari conta que:

“Um aldeão podia ser particularmente apto para fazer sapatos, outro para fornecer cuidados médicos, de modo que seus vizinhos sabiam a quem recorrer quando ficavam descalços ou doentes. Mas os povoados eram pequenos e suas economias eram limitadas, por isso não podia haver sapateiros e médicos em tempo integral.

A ascensão de cidades e reinos e o aprimoramento da infraestrutura de transporte proporcionaram novas oportunidades de especialização. Cidades densamente povoadas ofereciam empregos em tempo integral não só para sapateiros e médicos profissionais como também para carpinteiros, sacerdotes, soldados e advogados. Vilarejos que conquistaram uma reputação por produzir bom vinho, azeite ou cerâmica descobriram que valia a pena se especializarem quase que exclusivamente em um determinado produto e troca-lo com outros povoados por todos os outros bens de que necessitavam. Isso fazia muito sentido. Climas e solos são diferentes, então por que beber um vinho medíocre produzido em seu quintal quando é possível comprar uma variedade mais refinada de um local cujo solo e clima são muito mais adequados para a plantação de videiras? Se a argila de sua região resulta em recipientes mais resistentes e mais bonitos, é possível realizar uma troca. Além disso, com dedicação em tempo integral, comerciantes de vinho e oleiros, sem mencionar médicos e advogados, podem aperfeiçoar sua qualificação em benefício de todos. Mas a especialização criou um problema: como gerenciar a troca de bens entre os especialistas?

Uma economia baseada em favores e obrigações não funciona quando grandes números de estranhos tentam cooperar. Uma coisa é fornecer uma assistência gratuita para uma irmã ou um vizinho; outra bem diferente é cuidar de estranhos que podem nunca retribuir o favor. É possível recorrer ao escambo, mas ele só é eficiente quando se troca uma gama limitada de produtos. Não serve para formar a base de uma economia complexa.

Para entender as limitações do escambo, imagine que você tenha um pomar nas montanhas que produz as maçãs mais doces e viçosas de toda a província. Você trabalha tanto no pomar que seus sapatos se desgastaram. Então prepara uma carroça puxada por um jumento e desce para a cidade-mercado à beira do rio. Seu vizinho havia dito que um sapateiro que fica na extremidade sul do mercado fez para ele um par de botas muito resistentes que durou cinco estações. Você encontra o estabelecimento do sapateiro e oferece algumas de suas maçãs em troca dos sapatos de que necessita.

O sapateiro hesita. Quantas maçãs deve pedir em pagamento? Todos os dias ele encontra dezenas de clientes, alguns dos quais trazem sacos de maçãs, enquanto outros têm trigo, cabras ou tecido – todos de qualidade variável. Outros ainda oferecem sua expertise em fazer requisições ao rei ou curar dores nas costas. A última vez que o sapateiro trocou sapatos por maçãs foi há três meses e na época pediu três sacos da fruta. Ou será que foram quatro? Mas, pensando bem, aquelas eram maçãs ácidas do vale, e não maçãs nobres das montanhas. Por outro lado, na ocasião anterior, as maçãs foram trocadas por sapatos femininos pequenos. Esse sujeito está pedindo botas de tamanho masculino. Além disso, nas últimas semanas uma praga dizimou os rebanhos da cidade e o couro está ficando escasso. Os curtumeiros estão começando a exibir o dobro de sapatos finalizados em troca da mesma quantidade de couro. Isso não deveria ser levado em consideração?

Em uma economia de troca, o sapateiro e o produtor de maçãs terão que reaprender todos os dias os preços relativos de dezenas de mercadorias. Se cem produtos diferentes são trocados no mercado, compradores e vendedores terão que saber 4,95 mil taxas de câmbio diferentes. E se mil produtos diferentes são trocados, compradores e vendedores terão que lidar com 499,5 mil taxas de câmbio diferentes! Como resolver isso?

E ainda fica pior. Mesmo que se possa calcular quantas maças equivalem a um par de sapatos, o escambo nem sempre é possível. Afinal, em uma troca, é necessário que ambos os lados queiram o que o outro tem a oferecer. O que acontece se o sapateiro não gosta de maçãs e se, no momento em questão, o que ele realmente quer é um divórcio? É verdade, o fazendeiro até poderia encontrar um advogado que goste de maçãs, e fazer um acordo a três. Mas e se o advogado estiver cheio de maçãs e precisar mesmo de um corte de cabelo?

Algumas sociedades tentaram resolver o problema estabelecendo um sistema central de escambo que coletava produtos de cultivadores e manufaturadores especializados e os distribuía àqueles que precisavam. O maior e mais famoso desses experimentos foi conduzido na União Soviética, e foi um fracasso absoluto. “Todo mundo trabalharia conforme suas necessidades” se transformou, na prática, em “todo mundo trabalharia o mínimo possível e receberia o máximo que conseguisse.” Experimentos mais moderados e bem-sucedidos foram feitos em outras ocasiões, como, por exemplo, no Império Inca. No entanto, a maioria das sociedades encontrou uma forma mais fácil de conectar um grande número de especialistas – o dinheiro.”

Chegando finalmente à conclusão de que:

“... o dinheiro é, portanto, um meio universal de troca que permite que as pessoas convertam quase tudo em praticamente qualquer outra coisa.”

Após esta fantástica abstração sobre as origens do dinheiro, podemos constatar que os motivos pelos quais foi necessária a existência da moeda, historicamente, são resumidamente: as necessidades de possuir e trocar bens materiais e prestação de serviços. Como animais sociais que somos, produtos de um longo processo evolutivo, seja qual for o nosso estilo de vida, em qualquer época e condições que pudermos imaginar, sempre necessitamos e sempre necessitaremos possuir diversos bens, como maçãs, sapatos, roupas, alimentos, instrumentos; e serviços, como corte de cabelo, preparação de refeições, meios de transporte etc. E, como consequência de não termos tudo o que existe, tampouco de saber fazer tudo o que se é necessário e possível, sempre necessitamos e sempre necessitaremos trocar aquilo que temos e que sabemos fazer com o que outras pessoas têm e sabem fazer.

Desta necessidade básica e perene, da troca entre os diversos bens e serviços, como vimos na longa citação que trouxe no início do texto, é que surge e se mantém a necessidade da existência de uma moeda, para que se torne praticável o intercâmbio entre os mais variados itens, que geram uma infinidade de combinações e possibilidades de trocas.

Sendo assim, para que a existência do dinheiro se torne dispensável, para que o valor da moeda perca seu sentido, nossa configuração social deve dispensar essas necessidades, tão marcantes e enraizadas, de possuir bens e prestação de serviço individualmente, dispensando também, por consequência, a necessidade da troca entre estes bens e serviços.

Desta forma, o formato da dinâmica social desta sociedade deve ser de tal maneira que possibilite que todos possuam os mesmos bens e tenham disponíveis os mesmos serviços ao mesmo tempo, de modo que a troca destes entre os indivíduos não se faça mais necessária. Com este breve brainstorm acerca do assunto, eis que já temos o suficiente para podermos enunciar nosso primeiro grande pilar que sustentará a sociedade que estamos idealizando, na forma de um postulado:


Postulado 1: Toda e qualquer prestação de serviço e bem material que existe, que não seja intrinsecamente individual, é propriedade de cada um dos seres humanos vivos, e permanecerá sendo enquanto o serviço e/ou o bem existir e estiver disponível.


Dada esta afirmação, uma nuvem de pensamentos invade nossas cabeças. Nosso atual mindset grita com todas as suas forças na tentativa de evidenciar incoerências ou mesmo a impossibilidade de pôr esta ideia em prática. Todavia, como alertamos no texto anterior, este é um momento, dentre os diversos que ainda estão por vir, em que devemos ignorar nosso modelo mental atual e se atentar ao novo, àquele que estamos construindo lado a lado com a ideação de nossa nova sociedade. Portanto, vamos deixar de lado as constatações que possivelmente tenham surgido em nossas cabeças, e alimentar apenas as dúvidas, pensando, não de forma impeditiva, mas de forma curiosa e disposta a construir também as respostas para nossas próprias perguntas: como é que podemos tornar este postulado uma realidade prática?

Para que possamos responder a esta pergunta, vamos então retirar, da infinidade de consequências sociais que surgem deste postulado, as três que mais saltam aos olhos, as principais e mais abrangentes indagações, e vamos iniciar no restante deste texto uma profunda explanação sobre estas questões na tentativa de elucidar melhor a ideia principal, finalizando-a ao longo de todo o próximo texto.

Comecemos então da consequência mais óbvia e, talvez, mais impactante:

1 - A inexistência da propriedade privada.

Uma vez que postulamos que tudo o que se é produzido e prestado é propriedade de todos, ao mesmo tempo, a ideia de propriedade privada perde totalmente seu sentido. Neste ponto é importante frisar que há, obviamente, uma gama de bens materiais que não podem ser compartilhados, como itens de higiene pessoal, roupas íntimas, entre outras coisas. Esta categoria de itens também está inclusa em nosso postulado, e se acolhe no trecho “que não seja intrinsecamente individual”. Entretanto, a existência da individualidade destes bens não impede a coletividade dos demais, não impedindo, portanto, que a ideia seja factível. Em outras palavras, o fato de existir uma pequena gama de bens que não podem ser compartilhados, devendo permanecer como propriedades privadas devido a sua individualidade, não impossibilita que esta característica seja extinta socialmente, pois esta minoria de itens será apenas uma exceção necessária à regra.

Novamente, por mais óbvio que isto possa ser, dado o sistema capitalista e ultra consumista em que vivemos, sinto o dever de explicitar que não haverá necessidade de que exista, considerando os bens coletivos, um bem material de cada tipo para cada pessoa, para que todas tenham este certo bem ao mesmo tempo. Não é tão difícil quanto parece. Vejamos.

Não são necessários quase sete bilhões de carros para que todas as pessoas vivas tenham cada uma um carro, tampouco quase sete bilhões de máquinas fotográficas para que todos possam ter a sua. Isto deriva de diversos fatos básicos: não queremos jamais dirigir, cada um em um carro, todos ao mesmo tempo; e nem todo ser humano vivo pode fazê-lo – crianças, pessoas com deficiências que as impossibilitam dirigir, pessoas muito idosas etc. Da mesma maneira, não estaremos nunca fotografando algo, todos ao mesmo tempo, muito longe disso.

Extrapolando os exemplos acima para todo e qualquer tipo de bem e prestação de serviço podemos concluir sensatamente que para cada um deles que necessitarmos, é possível, e será necessário neste novo modelo social, que exista um estudo de oferta e demanda global, para que se chegue a um número ótimo, ou seja, o mínimo possível para que todos tenham acesso a seu bem ou serviço quando necessário, levando em conta a rotatividade natural das diversas necessidades de cada um.

Vamos aprofundar ainda mais: perceba também que, para que este modelo de oferta e demanda de bens e serviços possa ser posto em prática, é necessário também que a configuração física de nossas localizações seja também planejada e remodelada. Em outras palavras, para que todos possam ter tudo aquilo de que necessitam a tempo, em localidades não muito distantes de onde estiverem, será necessário que nossas construções, nossas configurações físicas de localidades, aquilo que hoje chamamos de cidades ou centros urbanos, sejam repensadas, reconstruídas.

Isto mesmo! Nosso novo modelo social promove mudanças em todos os níveis, de todos os tipos que nossa mente puder imaginar. As cidades deverão ser construídas de modo a obter grandes centros de armazenamento e distribuição de bens e serviços, todos localizados equidistantes uns dos outros, a uma distância tal das moradias que possibilite que todos os cidadãos tenham todos os bens e serviços de que necessitarem a uma distância razoável – distância esta que também pode ser obtida, sem muita dificuldade, através de estudos de logística e distribuição, bem como os tamanhos máximos de cada centro urbano e as extensões das rodovias que as interligarem também poderão ser extraídas de estudos, com o intuito de que sejam o melhor que possamos fazer até o momento.

Até aqui, iniciamos nossa discussão acerca do primeiro grande pilar e nossa nova sociedade, que estamos idealizando, enunciando nosso primeiro postulado e discorrendo sobre uma de suas três principais consequências sociais diretas - a inexistência da propriedade privada. No próximo texto, traremos as outras duas consequências sociais diretas de nosso postulado, e continuaremos discorrendo profundamente sobre cada uma delas, para termos a certeza de que começamos apontando para a direção correta. Estudamos a origem da moeda e, na sequência, iremos oblitera-la, dilacerando apenas com o trabalhar de nossas mentes, isto que chamamos de O OUTRO LADO DA MOEDA.

quinta-feira, 19 de julho de 2018

10 centavos - A religião é a questão - Parte 1

Pré-requisito: Nenhum.

Autor: Gustavo Spina


Uma das marcas mais evidentes de qualquer religião são suas afirmações construídas sem base em fatos. Em toda e qualquer religião, nós encontramos diversas alegações a respeito do mundo ou de acontecimentos passados e futuros, as quais não se baseiam em fatos e evidências sólidas, mas apenas na confiança que se tem na fonte de tais informações ou, no máximo, em fracas e controvérsias evidências principalmente históricas. Esta característica é comum a toda religião pois é exatamente isto que define um sistema de crença como tal, e isto se deve à existência da fé, cuja definição já foi apresentada e amplamente discutida por nós em muitos textos por aqui.

Com todos os assuntos acerca da religião já discutidos em outros textos, já temos suficientemente evidenciado a fragilidade e o relativismo em crer em afirmações que se baseiam inteiramente ou em grande parte na fé, além da baixíssima probabilidade dessa afirmação estar correta, caso isso seja possível. Por isso, o escopo deste texto não é discutir novamente sobre as afirmações em si, sua validade e probabilidade de ser verdadeira, mas sobre se elas atingem seu propósito, seu objetivo.

O objetivo de tais afirmações é, em sua maioria, prover uma resposta a alguma questão relativa a humanidade, aos seres vivos, ao universo; questões particularmente complexas que, ou o intelecto humano ainda não conseguiu desenvolver uma resposta, ou a resposta que temos é de tamanha complexidade que torna a compreensão muito difícil. Para estes casos, a religião aparece como um verdadeiro milagre, matando nossas mais inquietantes dúvidas com afirmações simples e diretas. Será? Nos próximos parágrafos nós vamos então descobrir se estas afirmações realmente respondem as questões, cumprindo seu propósito, ou se apenas geram ainda mais dúvidas acerca do tema inicial. Para uma melhor fluidez em nossa discussão, uma vez que estamos situados em um país de maioria cristã, utilizaremos exemplos especificamente do cristianismo, fazendo uso das argumentações do Dr. William Lane Craig, um dos maiores apologéticos cristãos da atualidade, filósofo e teólogo especializado em filosofia da religião, metafísica e filosofia do tempo. [1]

Nesta primeira parte, vamos investigar questões sobre as próprias alegações religiosas, a fim de analisar como a religião se sai tentando explicar a si mesma, respondendo questões acerca de suas próprias afirmações.


Questão 1 – Podemos confiar nas experiencias religiosas? [2]

Resposta dada por Craig: “Os filósofos reconhecem que existem um grande número de crenças que nós não podemos provar como verdadeiras, mas que independente disso todos nós aceitamos, agindo racionalmente ao assim fazer, pois elas estão fundamentadas em nossa experiência. Exemplos seriam a realidade do mundo externo, ou a realidade do passado. Quando você pensa nestas coisas, você não pode provar nenhuma destas duas crenças. Não há como provar que você não é um cérebro dentro de um tanque cheio de elementos químicos, ligado por eletrodos que estão sendo estimulados por alguns cientistas maléficos, para que você pense que está nesta sala vendo estes objetos, que eu estou realmente aqui. Não há nenhuma forma de saber que o mundo não foi criado há cinco minutos atrás, que nós não fomos criados com aparência de idade e com traços de memória em nosso cérebro de eventos que nunca aconteceram, com comida em nosso estômago que nós nunca comemos. Então você não pode provar evidencialmente a realidade do mundo externo ou a realidade do passado, embora claramente estas sejam crenças racionais que todos nós temos, e seria loucura, literalmente, se nós acreditássemos que o mundo foi criado há cinco minutos atrás ou que nosso cérebro está num tanque. Os filósofos chamam estas crenças de “crenças propriamente básicas”. Elas são parte do fundamento do sistema de conhecimento de uma pessoa. Mas estas crenças parecem ser arbitrárias – elas estão fundamentadas em nossa experiência. No contexto de ver, ouvir e tocar coisas eu formo naturalmente a crença de que existe um mundo externo de objetos físicos que são reais. E eu estou agindo racionalmente ao abraçar estas crenças na ausência de qualquer razão para pensar que elas não são confiáveis. A não ser que o cético possa me apresentar algumas boas razões para que eu pense que eu sou um cérebro em um tanque, ou que estas crenças básicas não são confiáveis, eu estou em meus perfeitos direitos racionais em reter essas crenças. Agora eu argumento que de forma similar a crença em Deus é propriamente básica para aqueles que genuinamente conhecem Deus. Eles têm uma experiência imediata de Deus como uma realidade objetiva, que dá testemunho através do seu Espírito de que eles estão em uma relação com Ele e que eles O conhecem. E na ausência de algum invalidador, alguma razão para acreditar que estas experiências são ilusões, você está em seus perfeitos direitos em prosseguir com esta experiência e acreditar que estas experiências são verídicas, isto é, são uma realidade objetiva.” [3]

Bem, ao desenvolver sua linha de pensamento, Craig basicamente afirma que a crença em Deus (o deus cristão descrito na Bíblia) é uma crença propriamente básica, o que, no começo de sua argumentação, define como “parte do fundamento do sistema de conhecimento de uma pessoa” uma crença que está “...fundamentada em nossa experiência...” e relaciona estas experiências com o “...ver, ouvir e tocar coisas...”.

O que ele não menciona neste ponto, e considero isso seu erro mais grave nesta resposta, é que nossas crenças propriamente básicas não se fundamentam apenas em nossos sentidos, longe disso, ele deixa de mencionar justamente as evidências! Nossos sentidos primários, como ver ouvir e tocar, são amplamente conhecidos como falhos e pouco confiáveis. Não acreditamos que nossos ossos são brancos ou que nosso Sistema Solar é composto por uma estrela e oito planetas apenas porque algumas pessoas viram e tocaram ossos, ou porquê há muitos relatos de avistamento do Sol e de alguns planetas próximos da Terra. Há muitas outras formas de confirmar estes dois fatos: vídeos, fotografias, telescópios, microscópios, espectrômetros, entre milhares de outros instrumentos utilizados para identificação de cores e catalogação de planetas e estrelas. Além disso, existe uma carga de milênios de acúmulo de conhecimento físico, químico, matemático etc. do Universo pela humanidade, que corrobora com estas duas afirmações.

De fato, não podemos provar filosoficamente que todos estes planetas realmente existem, ou que nós existimos e nossos ossos são brancos, mas temos evidências, teorias e conhecimento sobre o Universo e a maneira como ele funciona o suficiente para suportar e validar estas alegações. Por outro lado, a crença em Deus sim é totalmente baseada, como Craig exemplificou, em nossos sentidos. Não há, em todo o conhecimento acumulado pela humanidade desde o seu princípio, uma única evidência ou ao menos outro método ou meio pelo qual possamos confirmar que esta alegação é verdadeira que não for pela experiência pessoal de cada um através de seus sentidos básicos; e ela tampouco se encaixa com o conhecimento que temos acumulado, que tão bem explica a quase tudo. Diferentemente do que disse ele em sua conclusão, existem sim muitas razões para acreditar que estas experiências que ele citou são ilusões.

Dessa forma, sua argumentação se torna falaciosa, pelo simples motivo de ser construída em torno da ideia de que a crença em Deus é uma crença propriamente básica e, como vimos, isto não é uma verdade. Além disso, desta resposta, podemos gerar ainda mais questões:

  1. Uma vez que estas crenças são arbitrárias e fundamentadas em nossa experiência, como ele afirmou, se a minha experiência for com um deus diferente do deus cristão, ela será válida da mesma forma? 
  2. Se sim, então ambas as experiências garantem que nossas crenças, distintas, são igualmente válidas? 
  3. Se sim, como isso é possível? Mais de uma verdade absoluta coexistem? 
  4. Se não, o que garante a validade de uma ou de outra? 
  5. O que é “genuinamente conhecer Deus”? 
  6. O que é uma “experiência imediata de Deus”, e como experimentá-la? 
  7. Depende apenas de mim ter uma experiência dessas? 
  8. Como sei se foi realmente uma experiência ou se foi algo imaginado? 
  9. O que é Espírito? 
  10. Como todas estas teorias se encaixam com todo o conhecimento humano acumulado em toda a nossa existência? 

De fato, esta resposta além de não responder à pergunta, ainda abre no mínimo outras dez questões complexas, que com certeza, em alguma tentativa de resposta, cada uma delas gerariam ainda mais questionamentos, aumentando nossas dúvidas de maneira exponencial.

Vamos analisar agora outra questão.


Questão 2 - Quando Jesus morreu na cruz, Deus morreu? Se sim, a essência de Jesus verdadeiramente morreu? [Questão enviada a Craig por um fã]. [4]

Resposta dada por Craig: “O Concílio de Calcedônia declarou que o Cristo encarnado era uma pessoa com duas naturezas, uma humana e outra divina. Isto gerou consequências muito importantes. Isto implica que, uma vez que Cristo existia antes de sua encarnação, ele era um ser divino antes de falarmos sobre sua humanidade. Ele foi e é a segunda pessoa da Trindade. Na encarnação, esta pessoa divina assume uma natureza humana também, mas não há outra pessoa em Cristo além da segunda pessoa da Trindade. Existe um acréscimo de natureza humana que o Cristo pré-encarnado não tinha, mas não há acréscimo algum de uma pessoa humana à pessoa divina. Existe apenas uma pessoa, com duas naturezas. Portanto, o que Cristo disse e fez, Deus disse e fez, uma vez que quando falamos de Deus, estamos falando sobre uma pessoa. Esta é a razão do Concílio falar de Maria como “a mãe de Deus”. Ela carregou no ventre uma pessoa divina.”
“...Por exemplo, Cristo é onipotente em relação a sua natureza divina, mas é limitado em poder em relação a sua natureza humana. Ele é onisciente em relação a sua natureza divina, mas ignorante sobre vários fatos em relação a sua natureza humana. Ele é imortal quando nos referimos a sua natureza divina, mas mortal quando nos referimos a sua natureza humana. Você provavelmente já consegue entender agora aonde eu quero chegar. Cristo não poderia morrer em relação a sua natureza divina, mas ele poderia morrer em relação a sua natureza humana. O que é a morte humana? É a separação da alma do corpo quando o corpo cessa de ser um organismo vivo. A alma sobrevive ao corpo e se unirá com ele novamente algum dia em forma ressurreta. Foi isto que aconteceu com Cristo. Sua alma se separou do seu corpo e seu corpo cessou de viver. Por alguns instantes ele desencarnou. No terceiro dia Deus o ressuscitou dos mortos em um corpo transformado.
Em parte, sim, nós podemos dizer que Deus morreu na cruz porque a pessoa que submeteram à morte era uma pessoa divina.”. “...Assim eu acho melhor dizer que Cristo morreu na cruz em relação a sua natureza humana, mas não em relação a sua natureza divina.” [4]


No início de sua resposta, Craig cita o Concílio de Calcedônia, um concílio ecumênico invocado pelo imperador bizantino Marciano que ocorreu de 8 de outubro a 1 de novembro do ano de 451. Consequência de uma vasta gama de escrituras existentes, e do fato de todas elas serem bastante vagas e imprecisas quanto às suas alegações, eventos como este, que foi o quarto dos primeiros sete concílios ecumênicos da história do cristianismo, se fazem necessários. [5]

E isto nos fornece claros e importantes indicativos: que as escrituras são amplamente interpretativas e que a “verdade” que existe dentro delas é decidida arbitrariamente por integrantes da alta cúpula do cristianismo, que de tempos em tempos mudam o entendimento e quais alegações são válidas ou inválidas dentre todas aquelas. Craig constrói toda sua argumentação com base no que foi decidido neste concílio, quanta confiabilidade!

Apesar de ter, desta vez, de fato respondido à questão, novamente podemos gerar ainda mais questões da resposta dada:

  1. O que é a natureza humana? 
  2. O que é a natureza divina? 
  3. Como ambas as naturezas se inter-relacionam em um mesmo ser? 
  4. Existe outro tipo de natureza? 
  5. Existem outros tipos de morte, que não seja a humana? 
  6. Se sim, porquê em sua natureza divina Jesus era/é imortal? 
  7. Todos os seres divinos são imortais em sua natureza? 
  8. Existem outros seres com natureza divina? 
  9. Se sim, quantos e quem são eles? 
  10. Se não, porque? 
  11. O corpo em que ele ressuscitou não era o mesmo de antes? 
  12. Se sim, porque “transformado”? 
  13. Se não, que corpo era este, e o que aconteceu com o primeiro corpo? 
  14. Se ele mesmo criou sua natureza humana, e a utilizou para se sacrificar por nós, e ele como onipotente pode fazer isso quantas vezes quiser, isto continua sendo considerado um sacrifício? 
  15. O que aconteceu com o corpo de Cristo após a ressurreição?

E mais uma vez a resposta dada abre mais um leque de outras questões complexas, que com certeza também gerariam ainda mais questionamentos em alguma tentativa de resposta.

Na próxima parte, vamos analisar questões acerca de assuntos externos à própria religião, para ver como ela se sai tentando explicar às coisas e, por fim, fazer a conclusão dessa interessante discussão.