sábado, 25 de agosto de 2018

A Sociedade do Outro Lado 2 - A origem da moeda

Pré-requisito (obrigatório): A Sociedade do Outro Lado 1

Autor: Gustavo Spina

Uma das características mais fortes e universais das sociedades criadas pelo ser humano até então é a moeda. A moeda, no sentido de unidade de troca e objeto universal de medida do valor de bens materiais, esteve presente em quase todas as configurações sociais humanas, se consolidando e atuando no papel principal do atual sistema capitalista em sua forma final, a qual conhecemos popularmente como o dinheiro. Neste texto, iniciaremos efetivamente a construção de nossa nova configuração social, com o início do desenvolvimento da ideia que será o primeiro dos grandes pilares que sustentarão nossa sociedade – a obliteração da moeda – mas para que isto seja possível, precisamos primeiro aprender sobre a origem da moeda.

Vamos estudar as origens da moeda para podermos entender os motivos pelos quais ela teve de surgir, e isto nos dará bons insumos para conseguirmos desenvolver uma sociedade onde ela simplesmente não seja necessária. Vamos, então, analisar.

Quando os humanos eram caçadores-coletores, e mesmo após o início da Revolução Agrícola, a maioria das pessoas viviam em pequenas e íntimas comunidades. Cada bando, e mais tarde, cada aldeia, tinha uma unidade econômica autossuficiente, mantida por obrigações e favores mútuos, além de um pouco de escambo com forasteiros. Citando novamente o fabuloso livro Sapiens – Uma breve história da humanidade, Yuval Harari conta que:

“Um aldeão podia ser particularmente apto para fazer sapatos, outro para fornecer cuidados médicos, de modo que seus vizinhos sabiam a quem recorrer quando ficavam descalços ou doentes. Mas os povoados eram pequenos e suas economias eram limitadas, por isso não podia haver sapateiros e médicos em tempo integral.

A ascensão de cidades e reinos e o aprimoramento da infraestrutura de transporte proporcionaram novas oportunidades de especialização. Cidades densamente povoadas ofereciam empregos em tempo integral não só para sapateiros e médicos profissionais como também para carpinteiros, sacerdotes, soldados e advogados. Vilarejos que conquistaram uma reputação por produzir bom vinho, azeite ou cerâmica descobriram que valia a pena se especializarem quase que exclusivamente em um determinado produto e troca-lo com outros povoados por todos os outros bens de que necessitavam. Isso fazia muito sentido. Climas e solos são diferentes, então por que beber um vinho medíocre produzido em seu quintal quando é possível comprar uma variedade mais refinada de um local cujo solo e clima são muito mais adequados para a plantação de videiras? Se a argila de sua região resulta em recipientes mais resistentes e mais bonitos, é possível realizar uma troca. Além disso, com dedicação em tempo integral, comerciantes de vinho e oleiros, sem mencionar médicos e advogados, podem aperfeiçoar sua qualificação em benefício de todos. Mas a especialização criou um problema: como gerenciar a troca de bens entre os especialistas?

Uma economia baseada em favores e obrigações não funciona quando grandes números de estranhos tentam cooperar. Uma coisa é fornecer uma assistência gratuita para uma irmã ou um vizinho; outra bem diferente é cuidar de estranhos que podem nunca retribuir o favor. É possível recorrer ao escambo, mas ele só é eficiente quando se troca uma gama limitada de produtos. Não serve para formar a base de uma economia complexa.

Para entender as limitações do escambo, imagine que você tenha um pomar nas montanhas que produz as maçãs mais doces e viçosas de toda a província. Você trabalha tanto no pomar que seus sapatos se desgastaram. Então prepara uma carroça puxada por um jumento e desce para a cidade-mercado à beira do rio. Seu vizinho havia dito que um sapateiro que fica na extremidade sul do mercado fez para ele um par de botas muito resistentes que durou cinco estações. Você encontra o estabelecimento do sapateiro e oferece algumas de suas maçãs em troca dos sapatos de que necessita.

O sapateiro hesita. Quantas maçãs deve pedir em pagamento? Todos os dias ele encontra dezenas de clientes, alguns dos quais trazem sacos de maçãs, enquanto outros têm trigo, cabras ou tecido – todos de qualidade variável. Outros ainda oferecem sua expertise em fazer requisições ao rei ou curar dores nas costas. A última vez que o sapateiro trocou sapatos por maçãs foi há três meses e na época pediu três sacos da fruta. Ou será que foram quatro? Mas, pensando bem, aquelas eram maçãs ácidas do vale, e não maçãs nobres das montanhas. Por outro lado, na ocasião anterior, as maçãs foram trocadas por sapatos femininos pequenos. Esse sujeito está pedindo botas de tamanho masculino. Além disso, nas últimas semanas uma praga dizimou os rebanhos da cidade e o couro está ficando escasso. Os curtumeiros estão começando a exibir o dobro de sapatos finalizados em troca da mesma quantidade de couro. Isso não deveria ser levado em consideração?

Em uma economia de troca, o sapateiro e o produtor de maçãs terão que reaprender todos os dias os preços relativos de dezenas de mercadorias. Se cem produtos diferentes são trocados no mercado, compradores e vendedores terão que saber 4,95 mil taxas de câmbio diferentes. E se mil produtos diferentes são trocados, compradores e vendedores terão que lidar com 499,5 mil taxas de câmbio diferentes! Como resolver isso?

E ainda fica pior. Mesmo que se possa calcular quantas maças equivalem a um par de sapatos, o escambo nem sempre é possível. Afinal, em uma troca, é necessário que ambos os lados queiram o que o outro tem a oferecer. O que acontece se o sapateiro não gosta de maçãs e se, no momento em questão, o que ele realmente quer é um divórcio? É verdade, o fazendeiro até poderia encontrar um advogado que goste de maçãs, e fazer um acordo a três. Mas e se o advogado estiver cheio de maçãs e precisar mesmo de um corte de cabelo?

Algumas sociedades tentaram resolver o problema estabelecendo um sistema central de escambo que coletava produtos de cultivadores e manufaturadores especializados e os distribuía àqueles que precisavam. O maior e mais famoso desses experimentos foi conduzido na União Soviética, e foi um fracasso absoluto. “Todo mundo trabalharia conforme suas necessidades” se transformou, na prática, em “todo mundo trabalharia o mínimo possível e receberia o máximo que conseguisse.” Experimentos mais moderados e bem-sucedidos foram feitos em outras ocasiões, como, por exemplo, no Império Inca. No entanto, a maioria das sociedades encontrou uma forma mais fácil de conectar um grande número de especialistas – o dinheiro.”

Chegando finalmente à conclusão de que:

“... o dinheiro é, portanto, um meio universal de troca que permite que as pessoas convertam quase tudo em praticamente qualquer outra coisa.”

Após esta fantástica abstração sobre as origens do dinheiro, podemos constatar que os motivos pelos quais foi necessária a existência da moeda, historicamente, são resumidamente: as necessidades de possuir e trocar bens materiais e prestação de serviços. Como animais sociais que somos, produtos de um longo processo evolutivo, seja qual for o nosso estilo de vida, em qualquer época e condições que pudermos imaginar, sempre necessitamos e sempre necessitaremos possuir diversos bens, como maçãs, sapatos, roupas, alimentos, instrumentos; e serviços, como corte de cabelo, preparação de refeições, meios de transporte etc. E, como consequência de não termos tudo o que existe, tampouco de saber fazer tudo o que se é necessário e possível, sempre necessitamos e sempre necessitaremos trocar aquilo que temos e que sabemos fazer com o que outras pessoas têm e sabem fazer.

Desta necessidade básica e perene, da troca entre os diversos bens e serviços, como vimos na longa citação que trouxe no início do texto, é que surge e se mantém a necessidade da existência de uma moeda, para que se torne praticável o intercâmbio entre os mais variados itens, que geram uma infinidade de combinações e possibilidades de trocas.

Sendo assim, para que a existência do dinheiro se torne dispensável, para que o valor da moeda perca seu sentido, nossa configuração social deve dispensar essas necessidades, tão marcantes e enraizadas, de possuir bens e prestação de serviço individualmente, dispensando também, por consequência, a necessidade da troca entre estes bens e serviços.

Desta forma, o formato da dinâmica social desta sociedade deve ser de tal maneira que possibilite que todos possuam os mesmos bens e tenham disponíveis os mesmos serviços ao mesmo tempo, de modo que a troca destes entre os indivíduos não se faça mais necessária. Com este breve brainstorm acerca do assunto, eis que já temos o suficiente para podermos enunciar nosso primeiro grande pilar que sustentará a sociedade que estamos idealizando, na forma de um postulado:


Postulado 1: Toda e qualquer prestação de serviço e bem material que existe, que não seja intrinsecamente individual, é propriedade de cada um dos seres humanos vivos, e permanecerá sendo enquanto o serviço e/ou o bem existir e estiver disponível.


Dada esta afirmação, uma nuvem de pensamentos invade nossas cabeças. Nosso atual mindset grita com todas as suas forças na tentativa de evidenciar incoerências ou mesmo a impossibilidade de pôr esta ideia em prática. Todavia, como alertamos no texto anterior, este é um momento, dentre os diversos que ainda estão por vir, em que devemos ignorar nosso modelo mental atual e se atentar ao novo, àquele que estamos construindo lado a lado com a ideação de nossa nova sociedade. Portanto, vamos deixar de lado as constatações que possivelmente tenham surgido em nossas cabeças, e alimentar apenas as dúvidas, pensando, não de forma impeditiva, mas de forma curiosa e disposta a construir também as respostas para nossas próprias perguntas: como é que podemos tornar este postulado uma realidade prática?

Para que possamos responder a esta pergunta, vamos então retirar, da infinidade de consequências sociais que surgem deste postulado, as três que mais saltam aos olhos, as principais e mais abrangentes indagações, e vamos iniciar no restante deste texto uma profunda explanação sobre estas questões na tentativa de elucidar melhor a ideia principal, finalizando-a ao longo de todo o próximo texto.

Comecemos então da consequência mais óbvia e, talvez, mais impactante:

1 - A inexistência da propriedade privada.

Uma vez que postulamos que tudo o que se é produzido e prestado é propriedade de todos, ao mesmo tempo, a ideia de propriedade privada perde totalmente seu sentido. Neste ponto é importante frisar que há, obviamente, uma gama de bens materiais que não podem ser compartilhados, como itens de higiene pessoal, roupas íntimas, entre outras coisas. Esta categoria de itens também está inclusa em nosso postulado, e se acolhe no trecho “que não seja intrinsecamente individual”. Entretanto, a existência da individualidade destes bens não impede a coletividade dos demais, não impedindo, portanto, que a ideia seja factível. Em outras palavras, o fato de existir uma pequena gama de bens que não podem ser compartilhados, devendo permanecer como propriedades privadas devido a sua individualidade, não impossibilita que esta característica seja extinta socialmente, pois esta minoria de itens será apenas uma exceção necessária à regra.

Novamente, por mais óbvio que isto possa ser, dado o sistema capitalista e ultra consumista em que vivemos, sinto o dever de explicitar que não haverá necessidade de que exista, considerando os bens coletivos, um bem material de cada tipo para cada pessoa, para que todas tenham este certo bem ao mesmo tempo. Não é tão difícil quanto parece. Vejamos.

Não são necessários quase sete bilhões de carros para que todas as pessoas vivas tenham cada uma um carro, tampouco quase sete bilhões de máquinas fotográficas para que todos possam ter a sua. Isto deriva de diversos fatos básicos: não queremos jamais dirigir, cada um em um carro, todos ao mesmo tempo; e nem todo ser humano vivo pode fazê-lo – crianças, pessoas com deficiências que as impossibilitam dirigir, pessoas muito idosas etc. Da mesma maneira, não estaremos nunca fotografando algo, todos ao mesmo tempo, muito longe disso.

Extrapolando os exemplos acima para todo e qualquer tipo de bem e prestação de serviço podemos concluir sensatamente que para cada um deles que necessitarmos, é possível, e será necessário neste novo modelo social, que exista um estudo de oferta e demanda global, para que se chegue a um número ótimo, ou seja, o mínimo possível para que todos tenham acesso a seu bem ou serviço quando necessário, levando em conta a rotatividade natural das diversas necessidades de cada um.

Vamos aprofundar ainda mais: perceba também que, para que este modelo de oferta e demanda de bens e serviços possa ser posto em prática, é necessário também que a configuração física de nossas localizações seja também planejada e remodelada. Em outras palavras, para que todos possam ter tudo aquilo de que necessitam a tempo, em localidades não muito distantes de onde estiverem, será necessário que nossas construções, nossas configurações físicas de localidades, aquilo que hoje chamamos de cidades ou centros urbanos, sejam repensadas, reconstruídas.

Isto mesmo! Nosso novo modelo social promove mudanças em todos os níveis, de todos os tipos que nossa mente puder imaginar. As cidades deverão ser construídas de modo a obter grandes centros de armazenamento e distribuição de bens e serviços, todos localizados equidistantes uns dos outros, a uma distância tal das moradias que possibilite que todos os cidadãos tenham todos os bens e serviços de que necessitarem a uma distância razoável – distância esta que também pode ser obtida, sem muita dificuldade, através de estudos de logística e distribuição, bem como os tamanhos máximos de cada centro urbano e as extensões das rodovias que as interligarem também poderão ser extraídas de estudos, com o intuito de que sejam o melhor que possamos fazer até o momento.

Até aqui, iniciamos nossa discussão acerca do primeiro grande pilar e nossa nova sociedade, que estamos idealizando, enunciando nosso primeiro postulado e discorrendo sobre uma de suas três principais consequências sociais diretas - a inexistência da propriedade privada. No próximo texto, traremos as outras duas consequências sociais diretas de nosso postulado, e continuaremos discorrendo profundamente sobre cada uma delas, para termos a certeza de que começamos apontando para a direção correta. Estudamos a origem da moeda e, na sequência, iremos oblitera-la, dilacerando apenas com o trabalhar de nossas mentes, isto que chamamos de O OUTRO LADO DA MOEDA.

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