quinta-feira, 19 de julho de 2018

10 centavos - A religião é a questão - Parte 1

Pré-requisito: Nenhum.

Autor: Gustavo Spina


Uma das marcas mais evidentes de qualquer religião são suas afirmações construídas sem base em fatos. Em toda e qualquer religião, nós encontramos diversas alegações a respeito do mundo ou de acontecimentos passados e futuros, as quais não se baseiam em fatos e evidências sólidas, mas apenas na confiança que se tem na fonte de tais informações ou, no máximo, em fracas e controvérsias evidências principalmente históricas. Esta característica é comum a toda religião pois é exatamente isto que define um sistema de crença como tal, e isto se deve à existência da fé, cuja definição já foi apresentada e amplamente discutida por nós em muitos textos por aqui.

Com todos os assuntos acerca da religião já discutidos em outros textos, já temos suficientemente evidenciado a fragilidade e o relativismo em crer em afirmações que se baseiam inteiramente ou em grande parte na fé, além da baixíssima probabilidade dessa afirmação estar correta, caso isso seja possível. Por isso, o escopo deste texto não é discutir novamente sobre as afirmações em si, sua validade e probabilidade de ser verdadeira, mas sobre se elas atingem seu propósito, seu objetivo.

O objetivo de tais afirmações é, em sua maioria, prover uma resposta a alguma questão relativa a humanidade, aos seres vivos, ao universo; questões particularmente complexas que, ou o intelecto humano ainda não conseguiu desenvolver uma resposta, ou a resposta que temos é de tamanha complexidade que torna a compreensão muito difícil. Para estes casos, a religião aparece como um verdadeiro milagre, matando nossas mais inquietantes dúvidas com afirmações simples e diretas. Será? Nos próximos parágrafos nós vamos então descobrir se estas afirmações realmente respondem as questões, cumprindo seu propósito, ou se apenas geram ainda mais dúvidas acerca do tema inicial. Para uma melhor fluidez em nossa discussão, uma vez que estamos situados em um país de maioria cristã, utilizaremos exemplos especificamente do cristianismo, fazendo uso das argumentações do Dr. William Lane Craig, um dos maiores apologéticos cristãos da atualidade, filósofo e teólogo especializado em filosofia da religião, metafísica e filosofia do tempo. [1]

Nesta primeira parte, vamos investigar questões sobre as próprias alegações religiosas, a fim de analisar como a religião se sai tentando explicar a si mesma, respondendo questões acerca de suas próprias afirmações.


Questão 1 – Podemos confiar nas experiencias religiosas? [2]

Resposta dada por Craig: “Os filósofos reconhecem que existem um grande número de crenças que nós não podemos provar como verdadeiras, mas que independente disso todos nós aceitamos, agindo racionalmente ao assim fazer, pois elas estão fundamentadas em nossa experiência. Exemplos seriam a realidade do mundo externo, ou a realidade do passado. Quando você pensa nestas coisas, você não pode provar nenhuma destas duas crenças. Não há como provar que você não é um cérebro dentro de um tanque cheio de elementos químicos, ligado por eletrodos que estão sendo estimulados por alguns cientistas maléficos, para que você pense que está nesta sala vendo estes objetos, que eu estou realmente aqui. Não há nenhuma forma de saber que o mundo não foi criado há cinco minutos atrás, que nós não fomos criados com aparência de idade e com traços de memória em nosso cérebro de eventos que nunca aconteceram, com comida em nosso estômago que nós nunca comemos. Então você não pode provar evidencialmente a realidade do mundo externo ou a realidade do passado, embora claramente estas sejam crenças racionais que todos nós temos, e seria loucura, literalmente, se nós acreditássemos que o mundo foi criado há cinco minutos atrás ou que nosso cérebro está num tanque. Os filósofos chamam estas crenças de “crenças propriamente básicas”. Elas são parte do fundamento do sistema de conhecimento de uma pessoa. Mas estas crenças parecem ser arbitrárias – elas estão fundamentadas em nossa experiência. No contexto de ver, ouvir e tocar coisas eu formo naturalmente a crença de que existe um mundo externo de objetos físicos que são reais. E eu estou agindo racionalmente ao abraçar estas crenças na ausência de qualquer razão para pensar que elas não são confiáveis. A não ser que o cético possa me apresentar algumas boas razões para que eu pense que eu sou um cérebro em um tanque, ou que estas crenças básicas não são confiáveis, eu estou em meus perfeitos direitos racionais em reter essas crenças. Agora eu argumento que de forma similar a crença em Deus é propriamente básica para aqueles que genuinamente conhecem Deus. Eles têm uma experiência imediata de Deus como uma realidade objetiva, que dá testemunho através do seu Espírito de que eles estão em uma relação com Ele e que eles O conhecem. E na ausência de algum invalidador, alguma razão para acreditar que estas experiências são ilusões, você está em seus perfeitos direitos em prosseguir com esta experiência e acreditar que estas experiências são verídicas, isto é, são uma realidade objetiva.” [3]

Bem, ao desenvolver sua linha de pensamento, Craig basicamente afirma que a crença em Deus (o deus cristão descrito na Bíblia) é uma crença propriamente básica, o que, no começo de sua argumentação, define como “parte do fundamento do sistema de conhecimento de uma pessoa” uma crença que está “...fundamentada em nossa experiência...” e relaciona estas experiências com o “...ver, ouvir e tocar coisas...”.

O que ele não menciona neste ponto, e considero isso seu erro mais grave nesta resposta, é que nossas crenças propriamente básicas não se fundamentam apenas em nossos sentidos, longe disso, ele deixa de mencionar justamente as evidências! Nossos sentidos primários, como ver ouvir e tocar, são amplamente conhecidos como falhos e pouco confiáveis. Não acreditamos que nossos ossos são brancos ou que nosso Sistema Solar é composto por uma estrela e oito planetas apenas porque algumas pessoas viram e tocaram ossos, ou porquê há muitos relatos de avistamento do Sol e de alguns planetas próximos da Terra. Há muitas outras formas de confirmar estes dois fatos: vídeos, fotografias, telescópios, microscópios, espectrômetros, entre milhares de outros instrumentos utilizados para identificação de cores e catalogação de planetas e estrelas. Além disso, existe uma carga de milênios de acúmulo de conhecimento físico, químico, matemático etc. do Universo pela humanidade, que corrobora com estas duas afirmações.

De fato, não podemos provar filosoficamente que todos estes planetas realmente existem, ou que nós existimos e nossos ossos são brancos, mas temos evidências, teorias e conhecimento sobre o Universo e a maneira como ele funciona o suficiente para suportar e validar estas alegações. Por outro lado, a crença em Deus sim é totalmente baseada, como Craig exemplificou, em nossos sentidos. Não há, em todo o conhecimento acumulado pela humanidade desde o seu princípio, uma única evidência ou ao menos outro método ou meio pelo qual possamos confirmar que esta alegação é verdadeira que não for pela experiência pessoal de cada um através de seus sentidos básicos; e ela tampouco se encaixa com o conhecimento que temos acumulado, que tão bem explica a quase tudo. Diferentemente do que disse ele em sua conclusão, existem sim muitas razões para acreditar que estas experiências que ele citou são ilusões.

Dessa forma, sua argumentação se torna falaciosa, pelo simples motivo de ser construída em torno da ideia de que a crença em Deus é uma crença propriamente básica e, como vimos, isto não é uma verdade. Além disso, desta resposta, podemos gerar ainda mais questões:

  1. Uma vez que estas crenças são arbitrárias e fundamentadas em nossa experiência, como ele afirmou, se a minha experiência for com um deus diferente do deus cristão, ela será válida da mesma forma? 
  2. Se sim, então ambas as experiências garantem que nossas crenças, distintas, são igualmente válidas? 
  3. Se sim, como isso é possível? Mais de uma verdade absoluta coexistem? 
  4. Se não, o que garante a validade de uma ou de outra? 
  5. O que é “genuinamente conhecer Deus”? 
  6. O que é uma “experiência imediata de Deus”, e como experimentá-la? 
  7. Depende apenas de mim ter uma experiência dessas? 
  8. Como sei se foi realmente uma experiência ou se foi algo imaginado? 
  9. O que é Espírito? 
  10. Como todas estas teorias se encaixam com todo o conhecimento humano acumulado em toda a nossa existência? 

De fato, esta resposta além de não responder à pergunta, ainda abre no mínimo outras dez questões complexas, que com certeza, em alguma tentativa de resposta, cada uma delas gerariam ainda mais questionamentos, aumentando nossas dúvidas de maneira exponencial.

Vamos analisar agora outra questão.


Questão 2 - Quando Jesus morreu na cruz, Deus morreu? Se sim, a essência de Jesus verdadeiramente morreu? [Questão enviada a Craig por um fã]. [4]

Resposta dada por Craig: “O Concílio de Calcedônia declarou que o Cristo encarnado era uma pessoa com duas naturezas, uma humana e outra divina. Isto gerou consequências muito importantes. Isto implica que, uma vez que Cristo existia antes de sua encarnação, ele era um ser divino antes de falarmos sobre sua humanidade. Ele foi e é a segunda pessoa da Trindade. Na encarnação, esta pessoa divina assume uma natureza humana também, mas não há outra pessoa em Cristo além da segunda pessoa da Trindade. Existe um acréscimo de natureza humana que o Cristo pré-encarnado não tinha, mas não há acréscimo algum de uma pessoa humana à pessoa divina. Existe apenas uma pessoa, com duas naturezas. Portanto, o que Cristo disse e fez, Deus disse e fez, uma vez que quando falamos de Deus, estamos falando sobre uma pessoa. Esta é a razão do Concílio falar de Maria como “a mãe de Deus”. Ela carregou no ventre uma pessoa divina.”
“...Por exemplo, Cristo é onipotente em relação a sua natureza divina, mas é limitado em poder em relação a sua natureza humana. Ele é onisciente em relação a sua natureza divina, mas ignorante sobre vários fatos em relação a sua natureza humana. Ele é imortal quando nos referimos a sua natureza divina, mas mortal quando nos referimos a sua natureza humana. Você provavelmente já consegue entender agora aonde eu quero chegar. Cristo não poderia morrer em relação a sua natureza divina, mas ele poderia morrer em relação a sua natureza humana. O que é a morte humana? É a separação da alma do corpo quando o corpo cessa de ser um organismo vivo. A alma sobrevive ao corpo e se unirá com ele novamente algum dia em forma ressurreta. Foi isto que aconteceu com Cristo. Sua alma se separou do seu corpo e seu corpo cessou de viver. Por alguns instantes ele desencarnou. No terceiro dia Deus o ressuscitou dos mortos em um corpo transformado.
Em parte, sim, nós podemos dizer que Deus morreu na cruz porque a pessoa que submeteram à morte era uma pessoa divina.”. “...Assim eu acho melhor dizer que Cristo morreu na cruz em relação a sua natureza humana, mas não em relação a sua natureza divina.” [4]


No início de sua resposta, Craig cita o Concílio de Calcedônia, um concílio ecumênico invocado pelo imperador bizantino Marciano que ocorreu de 8 de outubro a 1 de novembro do ano de 451. Consequência de uma vasta gama de escrituras existentes, e do fato de todas elas serem bastante vagas e imprecisas quanto às suas alegações, eventos como este, que foi o quarto dos primeiros sete concílios ecumênicos da história do cristianismo, se fazem necessários. [5]

E isto nos fornece claros e importantes indicativos: que as escrituras são amplamente interpretativas e que a “verdade” que existe dentro delas é decidida arbitrariamente por integrantes da alta cúpula do cristianismo, que de tempos em tempos mudam o entendimento e quais alegações são válidas ou inválidas dentre todas aquelas. Craig constrói toda sua argumentação com base no que foi decidido neste concílio, quanta confiabilidade!

Apesar de ter, desta vez, de fato respondido à questão, novamente podemos gerar ainda mais questões da resposta dada:

  1. O que é a natureza humana? 
  2. O que é a natureza divina? 
  3. Como ambas as naturezas se inter-relacionam em um mesmo ser? 
  4. Existe outro tipo de natureza? 
  5. Existem outros tipos de morte, que não seja a humana? 
  6. Se sim, porquê em sua natureza divina Jesus era/é imortal? 
  7. Todos os seres divinos são imortais em sua natureza? 
  8. Existem outros seres com natureza divina? 
  9. Se sim, quantos e quem são eles? 
  10. Se não, porque? 
  11. O corpo em que ele ressuscitou não era o mesmo de antes? 
  12. Se sim, porque “transformado”? 
  13. Se não, que corpo era este, e o que aconteceu com o primeiro corpo? 
  14. Se ele mesmo criou sua natureza humana, e a utilizou para se sacrificar por nós, e ele como onipotente pode fazer isso quantas vezes quiser, isto continua sendo considerado um sacrifício? 
  15. O que aconteceu com o corpo de Cristo após a ressurreição?

E mais uma vez a resposta dada abre mais um leque de outras questões complexas, que com certeza também gerariam ainda mais questionamentos em alguma tentativa de resposta.

Na próxima parte, vamos analisar questões acerca de assuntos externos à própria religião, para ver como ela se sai tentando explicar às coisas e, por fim, fazer a conclusão dessa interessante discussão.


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