sexta-feira, 20 de março de 2015

Vida após a Vida


Pré-requisito: Nenhum

Autor: Gustavo Spina

VIVI. Na verdade, sobrevivi, e só agora eu tinha a consciência disso. Foram apenas trinta e dois anos, e ainda incompletos, por um dia. Nunca imaginei que isso fosse ocorrer agora. Está tudo tão confuso. Parece que tudo aquilo que eu nunca me importei em pensar, vinha agora à minha cabeça, de uma só vez. Aquilo não poderia ser o fim. Será que um acidente de trânsito faria mesmo minha vida acabar? E foi neste momento então que um último questionamento me fez criar uma enorme esperança: será que a morte era mesmo um ponto final?

Eu ainda existia. Minha consciência ainda estava ali, de alguma forma. Tudo o que eu sou ainda continuava, com exceção do meu corpo que, curiosamente, via ali parado em uma maca. Os aparelhos começaram a ser desligados, e meu corpo levado para fora daquele quarto, depressa. Não pude ver aquela cena por completo. Virei-me de costas e saí dali. Não consegui achar minha esposa e meu filho, pelos corredores do hospital. Estava atordoado, desorientado. Eu já não era o mesmo, com certeza não. Isso mudava tudo. Muitas dúvidas que eu tinha foram respondidas instantaneamente. A morte enfim não era um ponto final. Comecei a refletir sobre tudo aquilo, sobre toda a minha vida, pensando em tudo o que tinha acontecido nesses exatos 31 anos e 364 dias. Minha cabeça estava confusa e meus pensamentos embaralhados. Comecei, então, a vagar, enquanto tentava me lembrar de tudo.

Já do lado de fora do hospital, vi uma grande fila do outro lado da rua. Aproximei-me um pouco, e meus olhos percorreram lentamente todas aquelas pessoas, uma a uma, até fixarem em uma placa retangular simples, com uma única palavra escrita à mão: INÍCIO. Foi então que, como um estalo, aquilo me fez começar a recordar toda a minha vida, porém agora com outros olhos, com outra cabeça. Era como se um filme de tudo que vivi passasse por meus olhos, e eu, como um telespectador, pudesse refletir sobre tudo aquilo.

A me ver ainda criança, como se estivesse na posição de meus pais, me emocionei. Nunca antes havia percebido com tanta clareza o quanto somos frágeis em vida. E não apenas quando criança, afinal, é com quase 32 anos que eu acabei como estou agora, e devido a um acidente, tão rápido que mal posso me lembrar de como aconteceu. As imagens continuavam a vir diante dos meus olhos. Aquela frágil criança ia, aos poucos, tornando-se mais rígida. Pude então reviver minha infância e ter a certeza de que fui uma criança contente, mesmo com as condições de classe “média-baixa” de minha família. Nada de mais, nem nada de menos. Nunca cheguei perto de passar fome, tampouco de ter brinquedos eletrônicos ou luxuosos. O curioso é que agora percebia que esta característica se evidenciava em todas as partes da minha vida. Este perfil morno, mediano, esteve sempre presente.

Via-me agora em minha adolescência. A fase em que toda criança, frágil e indefinidamente errônea, começa sua mutação para adaptar-se ao mundo adulto. É a fase de maior mudança de nossas vidas, e como toda mudança é, no mínimo, trabalhosa; acaba por ser, na maioria dos casos, a fase mais difícil de nossa jornada. Mas será que era isso mesmo o que passava pelos meus olhos? Nunca considerei minha adolescência uma fase muito turbulenta, e, me assistindo agora com treze ou quatorze anos, pude confirmar esta constatação. Novamente, por mais que tivesse meus altos e baixos, eu estava sempre o mais próximo possível da média, e tudo continuava da mesma forma. Das paixões por algumas meninas às brigas na escola, ou das revoltas contra meus pais à formação de meu caráter: nunca fui muito profundo em nada. E lá estava eu, já esboçando minhas tendências a sempre seguir a rotina do meu dia-a-dia.

Não pude segurar o riso quando me vi aos dezesseis. Não havia nada que me dissesse com quantos anos eu estava, nas cenas que me vinham à frente, mas aquele corte de cabelo ridículo me dava essa certeza. Ainda bem que foi por pouco tempo. Nesta época, pude observar que alguns aspectos de meu caráter, que perduravam até hoje em meu ser, já estavam sendo consolidados. Naquele período já não era um fã ardoroso de nenhum estilo de música, apesar de ter me acostumado a ouvir músicas ‘Sertanejas’, comuns na cidade interiorana em que vivia, e que meu pai ouvia diariamente. Também já não possuía um esporte favorito, mesmo fazendo parte do time de futebol da minha escola.

E, por falar nela, lá estava eu na escola. Ver-me ali sentado naquela sala de aula, agora, é completamente diferente do que eu tinha em mente na época. Não era um aluno muito dedicado. Minhas notas eram sempre entre cinco e seis. Em alguns casos chegavam a sete, mas isso não me empolgava. Meus estudos foram concluídos, e logo estava trabalhando como repositor em um supermercado, perto de minha casa. Estava agora em torno dos vinte e dois anos, e minha vida era estável. Novamente, encontrava-me em minha rotina. Ia para a igreja todos os domingos, com meus pais, e embora eu sempre dissesse que era católico, à todos que fizessem qualquer pergunta, as manhãs de domingo eram meus únicos reais contatos com a religião. O máximo que eu fazia fora da igreja, no decorrer da semana, era pedir ajuda a Deus, em oração, quando as dificuldades do cotidiano apertavam um pouco mais. Senti vergonha. Fechei os olhos por um instante.

Quando os abri novamente, passava agora o dia em que conheci a menina que, anos mais tarde, se tornaria minha esposa e mãe do meu filho. Ela chegou à minha vida tipicamente como ela sempre foi: um “furacão”. Emocionei-me novamente a me ver, todo desajeitado, conversando com ela nos corredores do mercado onde trabalhava, e trabalho até hoje. Pude vivenciar nossos primeiros encontros novamente. Meu coração apertava de saudades, como nunca antes. Ela era meu inverso. Vivia intensamente, e aquela energia eufórica que ela esbanjava, sempre que nos víamos, me contando de seus planos e desejos, de suas peripécias e aventuras; foi o que me despertou interesse nela.

Enquanto eu revivia aqueles momentos, os sentimentos dentro de mim estavam muito mais fortes do que de costume. Experimentei sensações as quais nem sabia que existiam. De alegria à tristeza, de vergonha à saudade. Aquilo tudo que agora eu podia sentir me dava ânimo, me fazia ter vontade de viver, de viver de verdade! Assistia agora ao meu casamento. E depois à vida que levávamos juntos, em nossa casa. Mais uma vez, minha rotina havia sido instalada. Eu dizia a ela, vez ou outra, que a amava, mas, vendo tudo agora como um telespectador, ficou mais fácil enxergar que aquele sentimento pífio e fraco não era um verdadeiro amor. Só agora podia ver o quanto me tornei um peso para ela. Dias, semanas, meses e anos se passaram, e nada mudava. Como podia sentir tédio, ao assistir minha própria vida?

Nem mesmo meus sentimentos por ela haviam sido muito profundos. Sua personalidade eufórica, alegre e sempre cheia de planos e desejos foi, com o tempo, mitigando. Via agora que ela já não era mais a mesma. Como não percebi que estava causando isso, enquanto estava ao seu lado? Não pude conter o pranto. Não queria mais assistir àquilo. Estava arrependido. Queria voltar, queria poder ter outra chance para consertar tudo. Mas aquela exibição não cessava. Mais alguns meses se passaram e nascia agora meu filho. Vê-lo nascendo, falando suas primeiras palavras e dando seus primeiros passos, foi a gota d’água. Ele ainda tinha apenas dois anos de idade, no momento em que sofri o acidente. Eu precisava de mais tempo para poder criá-lo, como um verdadeiro pai. Minha consciência havia mudado. Eu só precisava de uma segunda chance pra poder mudar tudo aquilo.

Agora que já via ele com um aninho, pude ter a certeza de que aquele filme estava no fim. Aguardei. Finalmente, pude me ver entrando no carro, e dirigindo tranquilamente até meu serviço, na manhã daquele dia. O mercado fica do outro lado dessa pequena cidade, e no cruzamento com a única grande rodovia que existe por ali, acabei por olhar para apenas um de ambos os lados. Quando avancei, um carro me acertou em cheio na lateral oposta à que estava sentado. E foi assim que aquilo tudo terminou. As imagens cessaram. Aos poucos ia recuperando minha visão. Gradualmente podia ver, cada vez mais nítido, tudo à minha volta. Focalizei então, novamente, aquela placa, com a palavra “início”, escrita à mão. A fila, que antes dobrava o quarteirão, agora já não existia mais.

Antes que pudesse tomar qualquer atitude, fui invadido por uma enorme dor. Tudo em mim começou a doer, intensamente. Minha vista novamente se apagou e me senti como se estivesse sendo puxado para longe dali. Como num pulo então acordei, novamente em meu corpo, completamente imobilizado, naquela mesma maca que havia visto, sendo transportado. Estava agitado, não entendia o que estava acontecendo. As enfermeiras alarmaram-se com a situação, até que uma delas se aproximou, colocando a mão em meu rosto, e disse:

“Calma, calma! Está tudo bem. Está me ouvindo bem? Está me vendo? Nós estamos cuidando de você, tá bom? Você sofreu um acidente hoje pela manhã, e está no hospital. Não se assuste! Você entrou em coma devido ao forte impacto na cabeça, e está acordando agora. Mas está tudo bem. Ok?”

E novamente tudo havia mudado! Eu não havia morrido! Meu corpo havia apenas sido transferido de quarto, enquanto eu estava em coma! Nada podia me surpreender mais do que tudo aquilo, nada com exceção da imagem de minha esposa e meu filho, que adentravam o quarto, aflitos para me ver acordado. Nunca me esquecerei daquela cena. Eu desejei com todas as minhas forças que eu tivesse uma nova chance, pra poder viver de verdade, ao lado de minha esposa e meu filho, para poder fazer tudo o que não havia feito, pensar em tudo o que não havia pensado, sentir tudo o que não havia sentido. E lá estava a minha chance, lá estava minha família, lá estava eu, VIVO, à beira dos meus trinta e dois anos, com todo o tempo do mundo pela frente.

Fiz daquele acontecimento o meu lema de vida. Fiz daquela oportunidade a razão da mudança de minhas atitudes, do meu ser, de minha personalidade. E aquela não havia sido a única. Quantas chances eu já havia tido e não percebi? A cada manhã, eu tinha em minhas mãos uma nova oportunidade pra mudar, mas nunca enxerguei isso. Nunca enxerguei a vida como um constante processo de mutação, nunca enxerguei que o comodismo e a doença de ser sempre uma pessoa ‘normal’ levavam, dia após dia, minha vida à ruína. Foi necessária uma experiência de quase morte, para que eu pudesse abrir os meus olhos. De fato, eu estive morto durante quase trinta e dois anos, e agora eu finalmente nascia. A vida após a morte voltou a ser uma dúvida. Afinal, seria ou não seria a morte, um ponto final? Mas mais importante do que isto, era ter agora a certeza de que nunca foi necessário ter essa resposta pra poder enxergar O OUTRO LADO DA MOEDA.

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