sexta-feira, 6 de novembro de 2015

O Outro Lado dos Sistemas 3 - Consumindo a nós mesmos


Pré-requisito (obrigatório): O Outro Lado dos Sistemas 2

Autor: Gustavo Spina

Continuando nossa discussão sobre a construção humana do sentido da vida, dada a componente religiosa no final do texto passado, analisemos agora sua componente social. O sentido da vida sob a ótica social se traduz melhor como o nosso OBJETIVO. O que queremos fazer em toda a nossa vida, quais são os maiores feitios que desejamos realizar, quais são os nossos grandes planos e sonhos, quais são os nossos principais objetivos de vida? As respostas dessas perguntas configuram-se como o nosso sentido da vida sob a ótica social e que, apesar de serem diferentes para cada indivíduo, têm uma grande parte comum.

Para constatar a veracidade desta última afirmação, basta que você, em um rápido exercício mental, identifique quantas pessoas, dentro de todas aquelas que você conhece, NÃO querem, por exemplo, ter um ou mais filhos, ter uma casa própria, um carro e um emprego estável, de preferência em uma grande corporação. Se houver, são proporcionalmente pouquíssimas, certo? E você, agora, pode estar pensando: “mas é claro que é isto o que as pessoas querem. O que mais poderiam querer?”. E a resposta para esta pergunta vem ao longo de todo este texto, pois isto não é tão simples quanto essa afirmação sugere.

Os objetivos de vida citados no parágrafo anterior estão presentes na aniquilante maioria das pessoas, em especial daquelas que vivem em grandes centros urbanos, assim como este que vos escreve. E esta última observação é de extrema importância para que entendamos o porquê isto ocorre – o meio em que vivemos é decisivo neste processo. Se você, caro leitor, não for um habitante de um grande centro urbano, muito provavelmente você conhece sim, proporcionalmente, muitas pessoas que não têm como objetivo de vida um ou mais daqueles exemplos dados acima. Isto se deve ao fato de que o estilo de vida de cidadãos campestres ou rurais é completamente diferente do estilo de vida de um cidadão urbanoide ou metropolitano.

De uma forma mais simples, o que quero evidenciar no início deste texto é que o meio onde vivemos nos enquadra em um determinado estilo de vida, e este por sua vez nos fornece “sonhos prontos” que, sem que possamos perceber, acreditamos ser o que realmente queremos, e fazemos deles os nossos objetivos de vida. A princípio, isto tudo parece um tanto quanto óbvio e inofensivo, mas é muito mais danoso do que você pode imaginar.

Focando no estilo de vida urbano, que abrange uma parcela exorbitantemente maior da população mundial, não é difícil perceber que um padrão de felicidade nos é enfiado goela abaixo constantemente. Ligue a sua televisão, e assista às propagandas de margarinas, onde há sempre uma família composta por um pai, uma mãe, um ou dois filhos e um animal de estimação, todos sempre sorridentes, contemplando uma mesa farta; e você saberá do que estou falando. A felicidade é o objetivo em comum de todos, mas será que o que dizem sobre “ser feliz” serve mesmo para você?

Reflita: você realmente sonha em ser mãe? Você será realmente feliz tendo sua casa própria? O seu maior objetivo é, de fato, conseguir trabalhar em uma empresa multinacional e atingir o salário de dez mil reais por mês? Tudo o que você mais quer é um modelo específico de carro e alguém do sexo oposto no banco do passageiro? ISSO REALMENTE TE FARÁ FELIZ?

Vamos analisar então de que forma os grandes sistemas que regem o mundo em que vivemos hoje trabalham para nos moldar em um estilo de vida específico e muito bem definido, e qual é o objetivo por trás disto. Para tanto, devemos entender um pouco melhor sobre o funcionamento do capitalismo, e algumas de suas características mais expressivas, e é exatamente isto o que faremos nos próximos parágrafos deste texto.

Uma primeira constatação extremamente importante sobre o funcionamento do capitalismo é a forma de como o dinheiro é distribuído, a qual tomei a liberdade de chamar de distribuição de dinheiro espelhada. Esta simples ideia nos mostra que em um sistema capitalista, a desigualdade social é endêmica, ou seja, ela vem de dentro, faz parte do sistema, é uma consequência natural de suas próprias características.

Para entender esta simples ideia, vamos realizar uma breve discussão: uma vez que sabemos que há um número total finito de dinheiro no mundo, suponhamos que ele seja distribuído de forma igualitária para cada um dos habitantes da terra e a partir daí, o mundo comece a funcionar exatamente como ele funciona, de fato, hoje. Pensando coletivamente, não é difícil constatar que, através dos diferentes valores agregados a cada matéria prima ou produto final, após alguns dias no grande jogo de compra e venda mundial, a riqueza vai começar a se concentrar nos cofres daqueles países que possuem maior quantidade dos bens de maior valor agregado.

Da mesma forma, pensando individualmente, os diferentes valores de remuneração, baseados na importância social de cada vertente trabalhista, também causará uma maior concentração natural de dinheiro nos bolsos daquelas pessoas consideradas mais importantes socialmente. Entretanto, como havíamos dado como premissa em nosso exemplo, o dinheiro total do mundo é finito, e foi distribuído de forma igualitária para todos. Logo, para que haja um acréscimo de riqueza de uma quantidade qualquer para quaisquer indivíduos, é necessário que haja um decréscimo da exata mesma quantidade de riqueza para outros quaisquer indivíduos.

Esta última afirmação evidencia a forma de distribuição de dinheiro espelhada, pois assim como acontece na frente de um espelho, quanto mais distante você fica da superfície do vidro, ou quanto mais dinheiro um ou mais indivíduos concentram, mais distante a sua imagem espelhada também fica para o lado oposto, ou menos dinheiro um ou mais indivíduos concentram, na mesma exata proporção. E se isto ocorre naturalmente para o exemplo dado, em que a quantidade de dinheiro começou distribuída de forma igualitária para todos, se agrava ainda mais no caso real, onde esta distribuição não ocorreu.


Há ainda uma pequena, porém não menos importante, observação a ser feita sobre esta ideia. Voltando novamente à premissa de que toda a quantidade finita de dinheiro foi distribuída por todos os seres humanos, sabemos que há uma quantidade X de dinheiro com cada pessoa. Sendo assim, a partir do que acabamos de discutir, para que um indivíduo tenha um aumento em sua quantia total de dinheiro de X para X+ΔX, outro indivíduo deverá ter uma diminuição em sua quantia total de dinheiro de X para X-ΔX. Entretanto, podemos observar que se um indivíduo aumenta de forma exorbitante sua quantidade total de dinheiro, de modo que a quantia “ΔX” ultrapasse o valor de X, esta quantidade estará sendo retirada de mais de um indivíduo.

Isto significa que a quantidade de ricos e pobres não é proporcional “um para um”, porque o decréscimo de dinheiro tem um limite (o zero) muito mais fácil de ser alcançado do que o limite do acréscimo de dinheiro (o todo). Em outras palavras, a existência de um milionário não gera apenas um miserável, mas sim uma enorme quantidade deles, tantos quanto forem necessários para que, somados, resultem no decréscimo proporcional ao acréscimo de sua fortuna.

Com isto concluímos que, através do modo com o qual o capitalismo funciona, é impossível tê-lo em vigor sem a desigualdade social. É impossível haver a riqueza, sem a pobreza, o milionário sem o miserável, a fartura sem a fome e, portanto, é impossível uma sociedade justa onde todos os seres humanos tenham os mesmos direitos e as mesmas possibilidades de sucesso com o capitalismo sendo um dos grandes sistemas em vigor. Aprofundemo-nos ainda mais no funcionamento deste sistema.

O capitalismo funciona de forma bastante similar a um grande jogo de xadrez. Esta comparação se faz especialmente interessante ao observarmos a hierarquia dentro deste jogo, pois ela é muito bem definida separando a parte mais nobre (rei, rainha e seus guerreiros), na primeira fileira, da parte mais inferior (os peões), dispostos na segunda fileira, à frente. Não é preciso ser um exímio jogador deste clássico jogo de tabuleiro para saber que não seria sequer possível iniciar o jogo sem a fileira dos peões. Apesar de extremamente inferiores e limitados, são eles que estão à frente da batalha, e somente com seus movimentos feitos de forma adequada é que se torna possível uma estratégia de qualidade que leve o jogador à vitória.

De forma bastante semelhante, para que a riqueza das cerca de setenta milhões de pessoas mais ricas do planeta (aproximadamente 1% da população mundial) continue crescendo, e ultrapasse a riqueza dos outros 99% (o que acontecerá no ano de 2016, segundo estudos), é necessário que a classe mais inferior faça os movimentos corretos. Para isto, nada mais simples do que padronizar, incentivar e nos fazer acreditar que consumir é tudo o que precisamos fazer em nossas vidas para sermos felizes: sejam bem vindos ao CONSUMISMO.

De todos os deuses já criados na história da humanidade, o mais venerado de todos é, com certeza, o consumismo. O consumismo é a ferramenta através da qual as peças mais importantes do jogo – o rei e a rainha do xadrez, ou o 1% mais rico – se mantêm sempre na vitória, fazendo com que a riqueza das peças menos importantes - os peões, ou os 99% mais pobres - permaneça sempre baixa e, como consequência do que discutimos nos parágrafos anteriores; mantendo sua riqueza sempre alta.

Ao consumirmos exageradamente, nós estamos injetando grande parte de nossa miserável parcela da riqueza global de volta às garras das grandes corporações, cumprindo assim com a continuidade dessa escandalosa desigualdade financeira. O estilo de vida consumista, sobretudo no mundo ocidental é, atualmente, algo cultural. Vivemos toda a nossa vida trabalhando em profissões que não gostamos para comprar, de forma exagerada, porcarias das quais não precisamos, e agora sabemos o porquê.

Desde datas e feriados com o objetivo puramente comercial, como o dia de natal, quando comemoramos a suposta data de aniversário de um suposto líder religioso comprando os presentes mais caros possíveis para todos os nossos entes queridos; até as já citadas publicidades, que trabalham cada dia mais arduamente para que acreditemos que somos tudo e apenas aquilo que compramos: tudo nos leva a consumir. Não há como negar que, dentro deste cenário, existem pessoas muito mais consumistas que outras, e isto é intimamente relacionado à futilidade de caráter destes indivíduos. Todavia, esta “doença” vai muito além da futilidade, e para que enxerguemos isto, cabe aqui um exemplo bastante ilustrativo.

Apesar de pouco sabido, a quantidade de creme dental correta que deve ser utilizada na escovação de nossos dentes é de aproximadamente 1,5ml. Inclusive, para facilitar a visualização desta quantidade, a maioria das escovas de dente possui uma região de cerdas com coloração distinta das demais, que delimita a máxima superfície onde deve ser depositado o creme dental!


Muito provavelmente, você agora, ao olhar a imagem acima está surpreso ao saber que a quantidade correta é muito menor do que a que normalmente utilizamos. Estudos mostram - e a veracidade destas afirmações ficará à cargo de pesquisas por meio do caro leitor - que além de desperdício, o uso exagerado de creme dental causa o desgaste excessivo do esmalte dentário, e pode resultar em um distúrbio conhecido como fluorose, uma vez que há flúor na composição de todo e qualquer creme dental.

Pensando um pouco mais a fundo sobre o exemplo dado torna-se, então, uma intrigante questão saber de onde surgiu, tão massivamente, essa disparidade entre o correto e o feito comumente. E basta lembrarmo-nos de qualquer publicidade de creme dental, de qualquer marca que seja, para que tenhamos a resposta desta questão, para localizarmos a origem deste tão errôneo e prejudicial hábito.


Este foi apenas um exemplo, de um produto dentre as centenas de produtos que utilizamos diariamente, contidos no grupo dos milhares de produtos que compramos e consumimos em toda a nossa existência, sem ao menos imaginar que vivemos consumindo a nós mesmos. Com isto, podemos retornar ao início deste texto novamente e observar, agora que entendemos um pouco melhor sobre o funcionamento do capitalismo, que todos aqueles “sonhos em comum” que possuímos, padronizados por nosso estilo de vida, estão intimamente ligados ao consumismo, e este, por sua vez, à felicidade.

Afinal, para termos uma casa, devemos compra-la, para termos um carro, devemos compra-lo, para poder comprar a tudo o que sonhamos devemos passar a vida trabalhando para gerar lucro às grandes corporações, e para que continuemos consumindo, mesmo depois de mortos, devemos deixar herdeiros, ter filhos, e ensiná-los a buscar a felicidade, que acreditamos que consiste em fazer tudo isto o que passamos a vida toda fazendo: comprar, comprar e comprar. Seria este, realmente, o sentido de nossas vidas?

Finalmente, continuamos e finalizamos a discussão iniciada no texto anterior, sobre o sentido da vida, apresentando sua componente social. Entendemos um tanto quanto profunda e assustadoramente como o capitalismo funciona, podendo começar a desfazer, ainda que dentro de nossas cabeças, aquele posicionamento tradicional do jogo de xadrez, derrubando algumas peças, pondo em xeque toda aquela velha configuração; pois cada linha que escrevemos juntos nos revela mais claramente que os grandes sistemas que compõem o nosso mundo DEVEM ser derrubados, nos revelando ainda mais claramente O OUTRO LADO DA MOEDA.

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