segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

O Outro Lado dos Sistemas 4 - O relojoeiro que tudo vê


Pré-requisito (obrigatório): O Outro Lado dos Sistemas 3

Autor: Gustavo Spina

O mecanismo de um bom relógio é complexo, composto por diversas partes que se interconectam por meio de engrenagens. Para que seja de fato bom, deve ser desenvolvido por um bom relojoeiro, que saiba com maestria o que está fazendo, sendo capaz de prever até mesmo por quanto tempo seu mecanismo pode funcionar, antes de parar, seja por falta de bateria, seja por danos em componentes internos. Continuamos, a partir deste texto, nossos estudos analisando o grande mecanismo de relógio no qual estamos imersos; dando uma breve pausa na inspeção de como ele funciona, para inspecionar o modo como ele se mantém.

Saber como os grandes sistemas funcionam, como temos feito até agora, e continuaremos fazendo posteriormente, é de importância indiscutível; mas saber como eles se mantêm é de igual ou até maior importância. Afinal, se um de nossos objetivos for, por ventura, fazer com que o relógio pare de funcionar, para que então possa ser substituído por outro, é imprescindível que saibamos o que exatamente mantém suas engrenagens girando. Ainda com o foco no capitalismo e também no sistema monetário, vamos introduzir o conceito de obsolescência, e discutir, neste texto, as chamadas obsolescências programada e perceptiva.

Em uma rápida e básica pesquisa, o leitor pode confirmar que obsolescência é o ato ou a condição que ocorre a um produto fazendo com que se torne inútil, mesmo em perfeito estado de funcionamento, devido ao surgimento de seu sucessor ou de outra tecnologia mais avançada. Em um primeiro momento, podemos entender este conceito como uma consequência óbvia e natural de nosso progresso científico: à medida que a ciência nos proporciona novos conhecimentos e descobertas, que nos tornam capazes de desenvolver novos e melhores produtos, é bastante intuitivo que os produtos antigos deem lugar às novas tecnologias.

Um bom exemplo deste processo, como consequência natural do progresso científico, é a substituição dos antigos lampiões a gás, ou a querosene, pelas lâmpadas; que ocorreu após o advento da distribuição de energia elétrica em larga escala, no início do século XIX. Desta forma, em um cenário tecnológico completamente diferente, os lampiões tornaram-se inúteis, obsoletos, e tiveram de ser descartados por todos que os utilizavam, mesmo em pleno funcionamento.

Entretanto, nas mentes mais espertas e maléficas (e a esta altura já não temos dúvidas de que elas existem em abundância), este fenômeno pode se tornar uma poderosa estratégia econômica. Uma das definições da obsolescência programada a descreve como a decisão do produtor de propositadamente desenvolver, fabricar e distribuir um produto de forma que se torne obsoleto especificamente para forçar o consumidor a comprar a nova geração do produto. Desta forma, a obsolescência além de natural, a partir da década de 1920, surgindo na indústria automobilística com o intuito de que os consumidores passassem a trocar seus veículos com maior frequência; passou a ser também uma estratégia de mercado, que visa garantir o consumo constante por meio da insatisfação.

No texto anterior a este enxergamos de forma bastante clara que para que a pequena e mais rica parcela da população mundial permaneça em sua posição favorável e privilegiada, deve coagir a outra esmagadoramente grande e mais pobre parcela da população a injetar a maior parte de sua já pequena porção da riqueza mundial de volta às grandes corporações, por meio do consumismo; e a obsolescência programada se mostra como nada mais do que uma das principais ferramentas para que este objetivo seja cumprido com sucesso.

Que escolha temos, quando nossas máquinas de lavar roupas ou geladeiras simplesmente não ligam mais, no intervalo de aproximadamente cinco a dez anos de uso, ou quando algum componente interno de nossos aspiradores de pó, ou mesmo de nossas televisões se danifica poucos meses após a sua garantia válida por alguns poucos anos; sobretudo em um cenário onde o custo do reparo destes componentes, somado ao preço de um componente novo aproxima-se ou, como em grande parte das vezes, ultrapassa o valor de um equipamento novo e tecnologicamente mais avançado? Nenhuma, além de descartar o obsoleto e comprar o novo.

Nas últimas décadas, ficou evidente que a velocidade com que a tecnologia avança tornou-se assustadoramente veloz, e este cenário contribui ainda mais para a instalação da obsolescência programada. Desde então, esta ferramenta vêm sendo cada vez mais explorada, com a criação de cenários onde o que poderia significar apenas uma simples troca de um componente, acaba por acarretar a troca de diversos outros, ou mesmo do todo. Isto fica evidente com os computadores.

Se com o passar de alguns poucos anos, precisamos por ventura de uma maior capacidade de processamento de nossa placa de vídeo, ou simplesmente capacidade de armazenamento de nossas memórias RAM, bastaria que trocássemos nossa placa de vídeo por uma melhor, ou que adicionássemos mais “pentes” – como se diz popularmente – de memória. Entretanto, nem sempre isto se torna possível, já que conforme a tecnologia avança, as formas também mudam, mudando os encaixes e conexões internas, o que em muitos casos nos trazem a necessidade de trocar também, para que seja possível a adição dos novos componentes, a chamada “placa mãe”, o que por sua vez acarreta na troca dos demais componentes, tornando-se, muito provavelmente economicamente inviável se comparada à compra de um novo e completo computador. A troca ou adição de um único componente acaba por se tornar a compra de um novo e completo equipamento.

Ainda mais nociva e também mais intimamente ligada ao nosso estilo de vida fútil e consumista, é a chamada obsolescência perceptiva, que pode ser definida como forma de reduzir a vida útil dos produtos que ainda são perfeitamente funcionais e úteis, por meio do lançamento de novos produtos com aparência inovadora e pequenas mudanças funcionais (ou seria esta a definição da política de mercado da Apple?).

Em outras palavras, com esta técnica não se faz mais necessário que os produtos tornem-se obsoletos, de fato, por terem toda ou parte de sua funcionalidade propositadamente prejudicada com o decorrer do tempo; mas apenas que pareçam obsoletos, que aparentem obsolescência em relação aos novos e periódicos lançamentos sucessores. Para mostrar a si mesmo(a) que somos exemplos vivos dessa vergonhosa e nociva atitude, responda em pensamento: quantas vezes, nos últimos dois anos, você e as pessoas que o(a) rodeiam já trocaram seus smartphones por outros, de gerações posteriores, sem uma REAL necessidade?

A palavra “nociva” foi utilizada uma vez em cada um dos dois parágrafos anteriores. Em suas duas aparições, ela se referia à prática da obsolescência perceptiva, ou seja, do descarte de um produto completamente funcional, para dar lugar a outro, quase que identicamente funcional, como uma forma imbecil de futilidade cultural capitalista. Não é difícil saber o porquê esta prática é absurdamente nociva ao planeta – e eu ficaria muito feliz se o caro leitor o soubesse de antemão. O jargão de que “não se pode ter um consumo infinito em um planeta finito” já se configura como uma resposta razoável, afinal, os recursos de nosso planeta são em sua maioria finitos, e nosso estilo desenfreadamente consumista, sobretudo descartando produtos ainda em plena funcionalidade; anda completamente na contramão deste fato. Basta que façamos um mínimo de filosofia acerca dos produtos que possuímos para que saibamos que, obedecendo a lei de conservação de energia, eles não são criados a partir do nada: são, ainda que processadas, matérias primas retiradas do globo – desperdiçando-os estamos sendo íntimos cúmplices da exploração desenfreada e degradação ambiental, estamos sendo nossos próprios inimigos.

Para finalizar a discussão sobre os conceitos apresentados, podemos entender todo o processo ainda mais profundamente retornando ao exemplo da lâmpada incandescente. Após a transição dos lampiões para as lâmpadas de filamento, tivemos algumas outras transições, chegando às atuais lâmpadas fluorescentes e, neste momento, estamos no meio de outra grande transição deste produto, com o surgimento das lâmpadas de LED. Tomando como exemplo o tipo mais comumente utilizado no presente momento – as fluorescentes – seu tempo de vida útil é de cerca de alguns meses até que tenhamos que substituí-la por uma nova. Por ter sempre sido desta forma, e por ser uma característica comum a todos os tipos e marcas de lâmpadas residenciais, temos a ilusória impressão de que este é o tempo de vida útil natural da melhor lâmpada que pode ser fabricada. Errado!

Benito Muros, espanhol, criador e ex-presidente do Movimento SOP (Sin Obsolescencia Programada – em português Sem Obsolescência Programada) é conhecido polemicamente como o criador da “lâmpada que não queima”. Muros, em sua luta contra a obsolescência programada, realmente foi o inventor de uma lâmpada que dura cerca de 100 anos funcionando – apesar de ter garantia de 25 anos – e que o leitor pode facilmente encontrar à venda pela internet. Em meio a polêmicas e ameaças, como noticiado por todo o mundo no auge de sua invenção, este espanhol é principalmente um grande exemplo de que a obsolescência programada existe e está presente nos mais diversos produtos os quais nem imaginávamos ser predestinados, propositadamente, a perderem toda ou grande parte de sua funcionalidade, somente para que sejamos obrigados – e não mais apenas incentivados ou coagidos – a continuar exercendo aquilo que mantém o sistema em pleno funcionamento: CONSUMIR.

Após ter uma ideia do quão verdadeiramente complexo é este grande mecanismo de relógio no qual estamos imersos, e entender um pouco de seu funcionamento, descobrimos então que nós somos o óleo aplicado às engrenagens para que se desgastem menos. Descobrimos que nós somos também as pequenas e pontiagudas ferramentas de reparo, que a todo o momento permeiam e agem sobre o mecanismo realizando, vez ou outra, até a troca de engrenagens e da bateria que alimenta o sistema, a fim de praticar sua manutenção e perpetuar seu funcionamento. Somos todos ferramentas, instrumentos pertencentes e manipulados pelo relojoeiro, o relojoeiro que, de tão esperto, em vez de prever por quanto tempo seu mecanismo funcionaria, desenvolveu um modo pelo qual ele se auto repara, um modo pelo qual se mantém, um modo pelo qual não para. Desta vez, e infelizmente, o relojoeiro não é cego, pelo contrário: a tudo vê.

Neste texto vagamos pelo conceito de obsolescência, analisando suas várias formas e inferindo sobre suas consequências. Terminamo-lo, então, traduzindo toda a discussão desenvolvida na ideia de que somos os próprios agentes que mantém o sistema funcionando da forma como a qual ele funciona. Mas será que temos alguma escolha, que há outro modo de agir? No próximo texto, trataremos da resposta desta questão por meio de uma profunda discussão acerca de mais detalhes sobre o funcionamento da sociedade à nossa volta, finalizando este tema, prosseguindo em nossa caminhada com mais um passo em direção à verdade, por mais dura que ela possa ser; com mais um passo em direção ao OUTRO LADO DA MOEDA.

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