segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

O Outro Lado dos Sistemas 6 – O Espectador no Papel Principal

Pré-requisito (obrigatório): O Outro Lado dos Sistemas 5

Autor: Gustavo Spina

Quando assistimos a uma peça teatral sabemos, desde o início, que tudo aquilo não passa de uma mera encenação. Entretanto, mesmo tendo ciência deste fato, se a produção for de grandiosa qualidade podemos, ainda que por alguns instantes, incorporar aquilo que vemos à nossa realidade, tendo fortes sensações e reações durante a peça como, por exemplo, chorar pela trágica morte de algum personagem ao longo da história. Neste texto, traremos nossa discussão para um pouco mais perto de nossa vida cotidiana, para descobrir o porquê este assunto está tão longe dela; mergulhando de cabeça no grande teatro da vida real, o qual somos espectadores todos os dias, chamado POLÍTICA.

Apesar de termos obtido, através dos últimos textos, uma boa noção das razões pelas quais nós somos quem somos, estamos onde estamos e mantemo-nos nesta situação, ainda DEVE restar alguma inquietação. Esta inquietação deve estar em nossas cabeças desde o fim do texto anterior, como uma indignação, no sentido de que não seria possível que trabalhássemos para a manutenção desse sistema doentio, veementemente, em razão de algumas poucas ideologias, como o consumismo e o otimismo, salpicadas com alguns outros fatores. Não pode ser assim, tão simples. De fato, não é.

Analisando tudo o que discutimos até agora de uma forma mais perspicaz, podemos perceber que encontramos os meios através dos quais nós consumimos a nós mesmos, trabalhamos para a manutenção do próprio sistema, e louvamos a nossa própria miséria. Encontramos os porquês, as formas pelas quais agimos e os motivos pelos quais agimos da maneira que agimos. Mas até agora não sabemos como chegamos a este ponto, como estas ideologias são mantidas constantes em nosso senso comum, tampouco como isto tudo começou. Para obter respostas satisfatórias a estes questionamentos, percorreremos todas as linhas que ainda restam ser escritas nesta série de textos, concluindo-a e abrindo espaço para um outro leque de discussões e investigações talvez ainda mais interessantes.

Sem mais delongas, a política é a resposta para estas perguntas. É através do sistema político como chegamos a este ponto. Entre todas as características globais comuns entre os mais diversos sistemas políticos existentes no mundo de hoje, classifico três como as principais responsáveis pelos efeitos sociais citados nos textos anteriores: a hierarquização, o distanciamento e a proteção. Estas três características podem explicar, resumida e simplificadamente, o processo de politização do mundo.

Começando pela hierarquização, devemos voltar um pouco em nossa história evolutiva para que a entendamos: de acordo com a teoria da evolução, nossa espécie advém de antepassados com características amplamente estudadas e, por isto, muito bem conhecidas, sendo uma delas a de se dispor em grupos, a de socializar. Isso significa que trazemos em nosso código genético uma forte propensão a ser sociáveis, o que se traduz de forma óbvia em nosso atual estágio evolutivo, basta olhar a imensa sociedade, que construímos durante milhares de anos, ao nosso redor.

Viver em sociedade significa, em termos genéricos, interagir uns com os outros de forma minimamente organizada e toda e qualquer interação social, devido ao fato de agrupar diversas características individuais, traz consigo algumas características de grupo. Para o propósito deste ponto da discussão, a característica individual em questão é a liderança: a habilidade ou inabilidade de ser um líder provém, entre outros fatores, de uma maior ou menor propensão genética a esta característica. Se pudéssemos medir com precisão o nível de propensão genética em cada um de nós, analisando uma grande quantidade de indivíduos, certamente veríamos uma enorme variabilidade de valores, onde cada indivíduo teria um nível diferente afinidade à liderança. Uma vez que este grande grupo comece a interagir uns com os outros, nos momentos em que o uso desta característica for necessário, como na tomada de uma decisão que afeta todo ou grande parte do grupo, por exemplo; fica claro que os indivíduos com o nível mais alto de propensão genética à liderança vão se sobressair.

Tendo em vista que nossas características genéticas formam grande parte de nossa personalidade e não mudam em um período tão curto quanto o de nossas vidas (a evolução é um processo extremamente moroso), podemos logicamente supor que haverá recorrência deste fato. Em outras palavras, isso significa que na maioria das vezes em que houver uma situação que reivindique o uso desta característica individual, serão os mesmos indivíduos que se sobressaltarão ao grupo – aqueles com os níveis mais altos de propensão genética à característica da liderança. A recorrência deste fato, por sua vez, gerará uma liderança contínua, uma espécie de manutenção do poder para estes indivíduos e, com isto, podemos concluir o raciocínio enxergando que os indivíduos mais aptos a ser líderes se aproximam e se mantém, naturalmente, às decisões, ao poder, afastando-se, por consequência, dos outros indivíduos, formando nada menos do que uma hierarquia.

A hierarquização do grupo, apesar de ser uma das três principais características comuns aos mais variados sistemas políticos que existem e já existiram, é, na verdade, a base de tudo. Sem ela, as outras características não existiriam. De fato, o distanciamento e a proteção mantêm a hierarquização do grupo. O exemplo dado nos parágrafos anteriores remeteu a característica da hierarquização à algo natural, entretanto, é fundamental que se tenha em mente que esta naturalidade da hierarquização foi apenas uma forma de se compreender o porquê ela é uma característica de grupo e como ela pode ter surgido. Quanto mais longe de nossas raízes animais e instintivas estivermos socialmente, mais longe da naturalidade estarão as nossas características sociais, portanto, para manter esta característica tão presente em nossas sociedades ao longo da história, especialmente nos últimos séculos, muita inteligência foi (e é) necessária para isto e é deste fato que surgem as outras duas características as quais discutiremos a seguir.

Grande parte desta inteligência foi gasta na criação de um conjunto de ideias que, juntas, pudessem nos distanciar o máximo possível do poder, a ponto de nos impedir que chegássemos a ele e que, principalmente, puséssemos em risco a manutenção do poder a quem já o possui; ideias estas que formam a característica social que tomei a liberdade de chamar de distanciamento. Uma vez no poder, uma das formas mais simples que podemos imaginar de manter esta posição é evitar que outras pessoas possam chegar até ela. A escalada até o topo pode se tornar tão difícil quanto possível, à medida que quem já está lá em cima adiciona quantos obstáculos quanto puder imaginar.

Com o crescimento e intensificação das sociedades e suas relações internas, a complexidade e a quantidade de variações de atividades – trâmites – foi crescendo exponencialmente. O monitoramento e o controle dos trâmites de sociedades complexas como as nossas é inevitável, mas, o que acontece quando os tornamos excessivos? A resposta desta pergunta nos leva diretamente à porta de entrada para a criação da primeira ideia pertencente à característica do distanciamento que discutiremos: a burocracia, que pode ser definida como um “...sistema de execução da atividade pública, por funcionários com cargos bem definidos, e que se pautam por um regulamento fixo, determinada rotina e hierarquia com linhas de autoridade e responsabilidade bem demarcadas...”.

Basta que se eleve o monitoramento e controle dos trâmites sociais a um limite extremo, criando uma dificuldade absurda até nos mais simples afazeres sociais, para que as pessoas sejam vencidas por esta burocracia, sufocando seu dia-a-dia no oceano de atividades cotidianas que deveriam ser simples ou, em um mundo ideal, nem ao menos existir. Este sufocamento iminente nos ocupa, desencoraja e, em muitos casos, nos faz desistir de levar a realização de objetivos, planos e sonhos adiante, antes mesmo de tentar começá-la. Para ilustrar esta ideia, basta tentar encontrar algum meio de tornar-se político, no Brasil, sem contar com a sorte de nascer na família de algum deles.

Seguindo em frente em nossa discussão, não podemos deixar de observar que nossas condições de subsistência e nosso estilo de vida também são fatores cruciais para o distanciamento. Quanto mais privada de condições e oportunidades como saneamento básico e estudo de qualidade, e quanto mais imersa na necessidade de trabalhar para garantir essas poucas e lamentáveis condições de vida uma população é, mais distante mantêm-se da política, dos políticos e, consequentemente, de exercer alguma diferença significativa no poder das nações. E isto, para ser um pouco redundante, mantem a hierarquização: “nós” continuamos sendo a população e “eles” continuam sendo os políticos.

E por falar em exercer alguma diferença significativa no poder das nações, aposto que o fantasma da democracia já esteja rodeando seus pensamentos neste momento. A pobreza do argumento que utiliza a velha e conhecida frase de Winston Churchill, para dizer algo parecido com “a democracia é a pior forma de governo imaginável, com exceção de todas as outras experimentadas”, consiste no fato de dar crédito a algo ruim, por não ter existido nada menos pior até o momento. É triste perceber que estamos tão habituados à miséria, que nos orgulhamos de nivelar os sistemas por baixo, classificando a democracia como satisfatória, pelo simples fato de não ser péssima (e será mesmo que não é?).

Churchill tinha razão, mas apenas até a primeira vírgula de sua frase. A democracia, ao menos como é empregada hoje, ouso dizer que é a forma mais inteligentemente maligna de governar. É através da ilusão de que fazemos parte das decisões significativas no poder de nossa nação que ela proporciona a nós, muitas vezes, o conformismo com tais decisões: quando caminham para o lado que gostaríamos, nos sentimos feliz pois acreditamos estar entre os responsáveis; quando caminham para o lado contrário, culpamos aqueles que pensam diferente de nós ou, no mínimo, aguardamos obedientes até a próxima oportunidade de manifestar nosso “poder democrático”, na esperança de mudar aquela situação. Há maneira mais inteligentemente maligna de governar, que não mantendo a população tão distante quanto possível do poder, mas, ao mesmo tempo, fazendo-a acreditar que são as maiores responsáveis pelas grandes decisões, decisões estas que caminham exatamente na direção de nos manter distantes do poder? É um ciclo fascinantemente triste. Esta é a versão política da famosa ideia religiosa de que somos merecedores ou culpados pela nossa situação; afinal, todo governo é o reflexo de seu povo, certo? Não, isto definitivamente não está certo.

Para finalizar este manual de como se manter no poder, quase como uma versão moderna da clássica obra O Príncipe, de Maquiavel, temos a característica da proteção. Apesar de não termos acesso a um sistema de saúde básica de qualidade, o que muitas vezes nos toma grande parte ou até todo o tempo de uma vida preso a tratamentos médicos contínuos e recorrência de doenças, quando não nos mata na fila de espera por um transplante ou por um simples atendimento médico; apesar de não termos acesso a uma educação de qualidade, não raramente podendo concluir o ensino médio sem saber as regras básicas de nossa própria linguagem, mais ignorantes ainda em política, que não se configura como parte integrante do currículo de quase nenhum sistema de ensino nacional; apesar de trabalhar, em média, oito horas por dia, sem contar o tempo gasto com as enormes distâncias que devem ser atravessadas dentro das grandes cidades nos trajetos de ida e volta, e o tempo preso em engarrafamentos e falhas no transporte público, para garantir as mínimas condições de sobrevivência; apesar de estarmos tão ocupados com a quantidade colossal de afazeres inúteis ou fúteis os quais não podemos escapar, como pagar contas, resolver problemas em instituições financeiras e estatais, os quais nem ao menos existiriam sem a burocracia; apesar de sermos constantemente seduzidos pela doce ilusão de que fazemos a diferença e de que possuímos força, sendo bombardeados pelas ideias de que nós somos os responsáveis pela nossa situação e pela atual situação de nosso país; apesar de TUDO isto ainda pode-se encontrar resistência, força, disciplina, conhecimento e engajamento: ainda pode-se encontrar pessoas que conseguem escapar, com muito custo, de todos esses obstáculos e armadilhas, e que se revoltam contra o sistema. Para se prevenir destes verdadeiros guerreiros, a característica da proteção entra em jogo.

Apesar de todas as dificuldades mencionadas no parágrafo anterior, que obviamente não contemplam nem de perto toda a quantidade real de dificuldades que enfrentamos ao longo de nossa vida, é possível que consigamos nos desvencilhar de tudo isto e nos revoltar contra tudo isto o que sabemos, o que, na teoria, poria em risco a permanência no poder daqueles que já estão lá. Portanto, para que este “problema” não ocorra, nada mais simples do que institucionalizar represálias, usar a força bruta, da forma mais truculenta possível, afinal, nada é contra as regras para quem escreve as leis. É uma sucessão lógica: uma vez no topo da montanha, primeiro se coloca quantos obstáculos quanto possível, tornando a ideia da escalada intangível, depois, cria-se uma ilusão de que estar no pé da montanha é como estar no topo, e para aqueles que, ainda assim, insistirem em subir, mantenha um exército muito bem treinado para derrubá-los, sem nenhuma piedade.

O nome dessa força armada varia de acordo com sua localização mas, no geral, são conhecidos como polícia. Estes, que são verdadeiros cães de guarda adestrados dos políticos, são o que mantêm, em última instância, o status quo: é o último e valioso recurso da alta elite para se manter no poder e que, infelizmente, funciona extremamente bem.

O pífio juramento policial, resumidamente conhecido como servir e proteger [a população?], ou mesmo sua função explícita, de garantir a ordem pública, caem totalmente por terra na primeira manifestação popular que for contrária aos interesses da elite. Este fato é facilmente desnudado no Brasil, onde é descaradamente visível a diferença da violência policial entre manifestações políticas as quais os ideais vão de encontro aos da elite – inexistente – e as quais os ideais são contrários aos da elite – extrema violência. Ainda no Brasil, é igualmente fácil enxergar o real propósito da polícia, através da própria instituição. Sem estudo, mal preparados, mal remunerados, submetidos a tratamentos desumanos comparáveis aos quais se submete ao exército e compartilhando de todas as outras mazelas e frustrações de um brasileiro médio, o policial militar é vítima do sistema que ele próprio defende, com unhas e dentes. Aliás, que outro motivo teríamos para a existência de uma polícia de natureza militar para atuar com a população em geral, que não fosse a mais truculenta e violenta repressão?

Dessa forma, o cerco é fechado, não há saída, não resta nenhuma alternativa, nenhum caminho para que alguma mudança seja feita. Mesmo para os mais árduos guerreiros, como eu e (possivelmente) você que lê este texto, que conseguem se desvencilhar de todos os obstáculos naturais em viver nesta atual sociedade, o fim da linha não é nem próximo do que deveria ser para que pudéssemos realizar alguma mudança significativa nos atuais sistemas. Nossas ideias, discutidas e escritas ao longo de toda esta série de textos, e que agora chega ao fim, começa a ser apagada, linha a linha, pela dura borracha do cassetete que reside nas mãos de cada policial.

Só nos resta, então, como espectadores de uma peça teatral de extrema qualidade e realismo, fingir que acreditamos que tudo isso que estamos assistindo ao nosso redor é real, e não apenas uma encenação; que nada disso foi planejado, estudado, previamente elaborado e finalmente posto em prática, para nos surpreender com seu realismo espetacular. Neste teatro da vida real chamado política, nós somos os espectadores, mas, ao mesmo tempo, protagonistas, estamos no papel principal: aceitar os sistemas como eles são e trabalhar para mantê-los e perpetuá-los, indefinidamente, infinitamente. Apesar de termos chegado juntos à conclusão de que não há caminhos possíveis para a realização de uma mudança significativa, se isso fosse (ou tornar-se um dia) possível, devemos ter em mente o que fazer. O mais importante, sobretudo em uma revolução global, não se trata em apenas derrubar os atuais sistemas, e sim em saber quais outros sistemas deveriam existir, e estar no lugar destes. Nossas árduas discussões e investigações não chegou ao fim e, agora, tomarão um rumo completamente novo e diferente de tudo o que já discutimos por aqui: vamos construir, tijolo a tijolo, uma sociedade inteiramente nova; vamos, de fato, construir O OUTRO LADO DA MOEDA.

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